Câncer, doença, dor, morte, perda, saudade, tristeza.
Palavras que exprimem sentimentos e significados que se intercambiam, tecendo
uma fina e inescapável trama que invade vidas e deixa marcas indeléveis.
É óbvio que tudo gira em torno de quem é acometido pela
doença, mas nem sempre ele pode ou quer contar a sua história. Há psicólogos
que lidam com pacientes oncológicos que propõem a escrita como exercício terapêutico.
Conheci uma assim. A paciente, que, na verdade, era um tanto ou quanto
impaciente, se rebelava, mas como gostava de escrever, botava as ideias no
papel, e até planejava organizá-las em um livro. Infelizmente não teve a chance
de fazê-lo. Há casos em que a pessoa leva a ideia a cabo, como o Dr. David
Servan-Schreiber, em seu maravilhoso livro ‘Podemos dizer adeus mais de uma
vez’ (Editora Objetiva). Muita gente hoje usa as redes sociais. Alguns acham
que essa é uma atitude corajosa, outros se ressentem. Recentemente houve um
debate que chegou ao New York Times porque uma mulher divulgou sua doença nas
redes sociais e uma outra a criticou porque achava, basicamente, que aguentar
calado era a atitude correta. Como os críticos eram jornalistas, o quiproquó
virou um tsunami. Eu penso que falar é bom.
A doença tem um lado vergonhoso, embaraçoso, porque a mídia
vende saúde. E também porque constrange. Quando alguém está saudável, não sabe
como lidar com quem não está. Isso me leva a outro livro, ‘O clube do livro do
fim da vida’, de Will Schwalbe, que é basicamente um diálogo entre ele e sua
mãe, ao longo da quimioterapia a que ela se submeteu, entre discussões sobre os
livros que liam. Nesse ínterim, ela sugeriu que ele criasse um blog para manter
todas as pessoas de seu conhecimento informadas sobre seu estado, mas embora
falasse em seu nome, era a mãe que ditava o tom e o conteúdo do que era
postado. Durante todo o tempo da doença, ela procurava nunca se queixar, e
continuava lutando por suas causas, especialmente a construção de uma biblioteca
no Afeganistão, a se preocupar com a família, a ler os livros que combinava de
discutir com o filho.
O outro lado da moeda é tudo e todos os outros. Eles, nós só
existimos para, de alguma forma, dar algum apoio àquele ser amado.
Ler ‘A Geometria do Amor’, do meu amigo Luís Quintino, teve
uma repercussão imensa em mim, por várias razões. Primeiro, por me apresentar
pessoas admiráveis, como seu filho e sua esposa, e todos aqueles que os
acompanharam nessa jornada de amor. Também, por aprofundar discussões
filosóficas importantes sobre tudo que vale refletir, vida, morte, amor,
amizade, respeito, ética, sensibilidade.
Luís Quintino afirmou que tentou falar por “todos quantos
não podiam fazê-lo”, que tentou “traduzir neste livro a solidão do homem perante
a morte, procurando, mesmo assim, reafirmar que a procura da felicidade
continua a ser uma de suas maiores conquistas”. Mais uma palavra e mais um
sentimento intrinsecamente ligados à trama antes mencionada que não citei,
sabe-se lá porque, talvez na ilusão de que estamos tão concentrados na pessoa
que amamos, que evitamos pensar no fato de que ela é, em última instância, a
única doente, e a única que enfrentará, sozinha, a maior de todas as batalhas.
Queremos esquecer, quem sabe, que mesmo rodeados de gente, em algum canto de
nossas mentes, estamos sozinhos, e quando aquela pessoa que guarda um pedaço de
nós, que nos compreende como poucos ou como ninguém, nos deixa, algo se perde.
O autor dá pistas para a escolha do título do livro,
que pode parecer, à primeira vista, contraditório. A geometria remete aos
traços do rosto do filho ou às palavras metodicamente selecionadas para
expressar o que lhe vai à mente, mas ele não se vale dos números para entender
ou medir o que se passa. Tenta entender, lê inúmeros livros sobre o assunto, e
com isso vai dando sugestões notáveis, como no ‘Clube do Livro’ já mencionado,
ao mesmo tempo em que entremeia essas informações com insights personalíssimos,
só possíveis porque ele, a esposa e o Luís construíram uma relação amorosa
ímpar. A poesia, que, de alguma forma, o ajuda nesse percurso, tem sua precisão:
a palavra certa é vital. Como disse alguém, Thomas Edison ou Einstein, o gênio
é um por cento inspiração, e 99% transpiração. Não é por acaso que toda essa
geometria amorosa que resulta inspire.
Engana-se quem acha que vai encontrar tragédia e dor
hollywoodianas. O sofrimento descrito é real, decorrente da história de uma
doença que atinge um jovem de menos de 20 anos, filho único, e o choque que
isso, naturalmente, causa em seus pais, família e amigos. Daí em diante, tudo
que se relata é, literalmente, exemplar. O jovem Luís, em vez de ceder à
doença, como muitos o fazem (eu, por exemplo, me confesso uma péssima paciente,
e o admiro imensamente), assumiu uma postura corajosa. Diria que a sua foi
uma jornada do herói, de resistência, força, coragem, dedicação, fé (à sua
maneira), proteção aos desfavorecidos (como voluntário), criatividade e
conquista. Penso que nos anos que lhe couberam, fez mais do que muitos de nós
fazemos em toda uma vida.
Luís Quintino afirma que o Luís tinha a noção exata do
inacabado. Só posso imaginar o que é ter uma expectativa de vida encurtada,
limitações severas... Mas para quem encarou a doença com uma bravura rara, me
parece que a compreensão do inacabado é a mesma que toma conta daqueles que
sabem que não existem certezas.
Há uma passagem em que o autor menciona que o filho
diz, “sofrerei na pele por todos e mais alguns porque estou nessa disposição,
na disposição de ver todos na sua maior felicidade”. Não tenho como saber o que
se passava em sua cabeça, mas ao ler isso, me lembrei de um livro da monja
budista Pema Chödrön, quando explica a prática ‘tonglen’. Trata-se de um método
para se conectar com o sofrimento – o nosso e o de todos a nossa volta, aonde
quer que vamos, que começa exatamente
pela prática de se tomar a si o sofrimento de uma pessoa que se sabe estar
sofrendo e se deseja ajudar. Quando li sobre a prática, confesso que achei muito difícil. Como absorver o sofrimento dos outros, voluntariamente, ainda que seja
um exercício mental (o sofrimento mental é real!)? Não surpreende que tenha me
detido nessa passagem. A meu ver, somente uma pessoa com avançado
entendimento é capaz de pensar assim.
Luís Quintino afirma que desde o início da doença do filho eles
foram privilegiados com um novo nível de consciência. Os reveses da vida têm
essa capacidade, mas só para algumas pessoas. Alguns reagem a um
trauma com resiliência, outros com depressão. Leio ‘A Geometria do Amor’,
testemunho a luta heroica e sem pieguices ou complacência, como está dito, e me
assombro. Como isso é possível? Como é possível ser o espectador imparcial que
quer o escritor? Pois se uma gripe nos põe o corpo abatido e a vontade de nos
enfiarmos sob as cobertas. E os pais? O coração que aperta quando os filhos vão
aqui ou acolá e não dão notícia, como assistir imparcialmente ao seu
sofrimento?
Quantas vezes vocês emitiram seus gritos mudos, e choraram
as lágrimas que ninguém viu, para não desmoronar, não fazer ninguém mais
sofrer, a não ser vocês mesmos? Sim, concordo com o Luís Quintino, apesar da
perda avassaladora, vocês viveram um grande, um imenso amor.
Levei algum tempo para ler esse livro, devido às emoções que
despertou, e mais algum tempo para escrever sobre ele. Não é fácil entender (e
aceitar) as perdas. Luís Quintino diz que uma forma de lidar com a saudade é
via poesia. Eu me refugio teimosamente na prosa, mas só para ser contraditória,
e em homenagem ao autor, recorro a um poeta:
“O que fazer?
Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Mesmo quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para
A vida não para não
Será que é tempo
Que lhe falta pra perceber?
Será que temos esse tempo
Pra perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara
Tão rara”
[Lenine, Paciência]
Pois o tempo, embora não traga esquecimento, traz uma certa
calma. E como o próprio autor citou, “o amor não tem tempo, e dura no que
amaste”. (Antônio Franco Alexandre, Poemas, Lisboa)
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