"“A alma me caiu aos pés” é uma expressão espanhola que eu conheci através de um dos meus escritores favoritos, o madrilenho Jorge Semprún.
Educado em francês e alemão, apaixonado pelas palavras, Semprún é fascinado pelo que essa expressão descreve com exatidão: o momento aterrador em que nosso mundo vem abaixo, o instante em que nos vemos nus diante da realidade acachapante.
Lembro que a alma me caiu aos pés numa noite chuvosa de terça-feira, em São Paulo.
Eu havia saído com a namorada e tivemos um desentendimento repentino, explosivo, desses que termina em gritos e lágrimas sem que qualquer um dos dois tenha (ao menos conscientemente) intenção de romper e causar dano.
Discutimos no carro, a caminho de um restaurante, e retornamos à casa dela sem nos olhar. Eu a deixei sob a luz amarelada do prédio. Tão logo acelerei o carro, furioso, aconteceu: a alma me caiu aos pés.
De um só golpe me veio, inteira, a importância daquela mulher na minha vida. O mundo sem ela ficou instantaneamente vazio de sentido. A amargura subiu pela garganta e me dominou a ponto de quase impedir o ato de guiar.
Sei que cheguei em casa e me larguei na poltrona, sentindo as coisas ruírem à minha volta. Eu me sentia inteiramente só. E apavorado. Pensei: como se vive com esse sentimento?
Antes que eu tivesse chance de descobrir, ela telefonou.
Conversamos cautelosamente, como dois bichos feridos: um percebendo no outro, pela primeira vez, o potencial de causar dor. Como não havia nada realmente errado, as coisas se resolveram e a ordem do universo foi restaurada. A vida voltou ao seu lugar.
Desde então, porém, a pergunta me persegue: como se vive com tamanha dor? Como se lida com o reverso do amor?
Tenho uma amiga que terminou outro dia um namoro bonito, com um sujeito devotado, e se encontra inteiramente tranquila. Na verdade, está feliz por ter mais tempo para si mesma.
Tenho outra amiga que é inteiramente diferente. Ela terminou um namoro ruim e está em farrapos: não consegue estar só e sentir-se bem.
A maioria dos homens que eu conheço pertence ao segundo grupo.
Diante de um rompimento indesejado, eles desabam. Correm para o bar, enchem a cara, ligam para todas as mulheres da cidade, fazem o maior barulho possível. Se apavoram.
Sempre tive a impressão de que pertencer a esse grupo era a única maneira de existir. Do lado dos sóbrios e tranquilos, eu pensava, só há gente fria. Gente que eu não queria ser.
Hoje penso ligeiramente diferente. Tendo sentido a alma nos pés mais de uma vez, me parece invejável a capacidade de algumas pessoas de estar no centro da própria vida permanentemente – em vez de deixar que outro ser humano ocupe esse lugar essencial.
Quando as relações terminam, essas pessoas saem quase intactas. Vão recuperar sozinhas a própria integridade. Sem pânico. Sem drama. Isso significa que se divertiram menos no caminho? Significa que gostaram menos? Talvez. Ou talvez signifique, apenas, que são mais equilibradas.
Assim como a sombra, talvez a alma devesse estar colada ao corpo permanentemente. Deve haver algo de errado com uma alma que vive caindo nos pés."
Publicado na revista Época
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI88758-15230,00-O%20REVERSO%20DO%20AMOR.html
Nem sei se é a alma ou o coração... é o que faz o coração da gente disparar... no fundo é o cérebro mesmo, ele é que é o gatilho de tudo, de todos os sintomas que nos acometem e todas as vergonhas, pânicos, pavores, vontade de nos trancarmos dentro de casa e nunca mais sairmos, ou, talvez, ao contrário, sair e sacudir alguém, quiçá apagar tudo, fazer voltar o tempo, às vezes até ao momento em que sequer existíamos...
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