terça-feira, 18 de julho de 2017

Celebrando Jane Austen: lá se vão 200 anos de sua morte

Como ainda é possível ficar triste com a morte de uma pessoa que já se foi há 200 anos? Já lemos biografias, vimos filmes, o conhecimento do fato se perdeu na memória, e mesmo assim lá vem a tristeza… primeiro pelo eterno inconformismo, porque tão cedo? E depois pela querência de não perder aquela pessoa, aquela personagem que transformamos em heroína na nossa mente, e que passou a fazer parte da nossa vida. Mas acusamos o golpe quando lemos o relato não de um biógrafo distante, mas daquela que esteve presente, da irmã/melhor amiga, que acompanhou nossa heroína de carne e osso literalmente até o último suspiro.



Seus últimos momentos (acervo) - 14/05/2017

“Eu mesma pude fechar seus olhos, e foi uma enorme gratificação poder prestar-lhe esses últimos serviços. Não havia nenhum traço de convulsão que desse a ideia de dor em sua aparência; pelo contrário, exceto pelo movimento contínuo da cabeça ela transmitia uma ideia de bela estátua, e mesmo agora, em seu caixão, há tamanha doçura e serenidade em seu rosto que é quase agradável contemplar. (...) A última triste cerimônia ocorrerá na quinta-feira pela manhã; seus queridos restos mortais serão depositados na catedral. É uma satisfação para mim pensar que eles repousarão em um lugar que ela admirava tanto; sua alma preciosa, ouso esperar, descansa em uma mansão superior. Que a minha possa um dia se reunir a ela!” *

Austen, Jane. THE LETTERS OF JANE AUSTEN (Kindle Locations 4023-4032). MonkeyBone Publications. Kindle Edition. 


A história de Jane Austen já é conhecida demais, não preciso ficar repetindo. Nem careço de falar de seus livros, já que o cinema se encarregou de tornar alguns bem famosos, e dar à autora fama e reconhecimento com que ela nunca sonhou. Não sou muito fã de reconhecença póstuma, mas nada posso fazer a respeito. Sigo a corrente de admiradores, e quando possível, vou atrás daquilo que evoca a presença da escritora.

Um breve histórico: meu primeiro contato com ela data dos tempos de faculdade, quando estudamos Pride and Prejudice na cadeira de Literatura Inglesa, na década de 1970.

Avançamos 20 anos, e vem a BBC produzir uma série muito fiel (1995) que arrebatou corações. Bom, digamos razoavelmente fiel, já que um dos motivos para a popularidade da série se deve a um mergulho num lago e uma camisa molhada de um dos principais personagens do livro, Mr. Darcy, representado pelo ator Colin Firth. O resto é história. Até hoje só não vi nenhuma adaptação de Mansfield Park (o menos favorito dos livros, vou ter de reler um dia para reavaliar).

Encerro a introdução porque hoje, passados exatos 200 anos da morte de Jane Austen, quero deixar de lado minhas opiniões sobre os livros, qual o favorito, como chorei de emoção ao visitar Chawton, última residência dos últimos anos de sua vida até se deslocar para Winchester para uma última tentativa de cura da doença que a consumia. Quero chegar à belíssima catedral de Winchester, onde visitei a última morada de Jane Austen.

Catedral de Winchester (Acervo) - 14/05/2017


Catedral de Winchester (Acervo) - 14/05/2017

É claro que a catedral merece a visita por si só, mas o maior movimento se vê em torno da pequena exposição com itens e cartazes relativos à vida da autora. Além da tumba, é claro, onde há uma inscrição elaborada por um de seus irmãos. Que sequer menciona seu singular talento.

O interior da catedral maravilhosa (Acervo) - 14/05/2017

A tumba - próxima da entrada, à esquerda (acervo) - 14/05/2017


"In Memory of JANE AUSTEN, youngest daughter of the late Revd GEORGE AUSTEN, formerly Rector of Steventon in this County. She departed this Life on the 18th of July 1817, aged 41, after a long illness supported with the patience and the hopes of a Christian. The benevolence of her heart, the sweetness of her temper, and the extraordinary endowments of her mind obtained the regard of all who knew her and the warmest love of her intimate connections. Their grief is in proportion to their affection, they know their loss to be irreparable, but in their deepest affliction they are consoled by a firm though humble hope that her charity, devotion, faith and purity have rendered her soul acceptable in the sight of her REDEEMER."

"Em memória de JANE AUSTEN, filha mais nova do falecido Reverendo GEORGE AUSTEN, antigo encarregado da paróquia de Steventon neste Condado. Ela partiu desta Vida em 18 de julho de 1817, aos 41 anos, após uma longa doença suportada com a paciência e as esperanças de uma Cristã. A benevolência de seu coração, a doçura de seu temperamento, e as extraordinárias qualidades de sua mente obtiveram o apreço de todos que a conheceram e o amor mais caloroso de suas conexões mais próximas. Sua dor é proporcional ao seu afeto, eles sabem que sua perda é irreparável, mas em sua mais profunda aflição são consolados por uma firme porém humilde esperança de que sua caridade, devoção, fé e pureza tornaram sua alma digna da presença de seu REDENTOR." *


O registro do enterro (Acervo) - 14/05/2017

Parece que o registro do sepultamento foi feito posteriormente, pois a data que consta no livro é anterior ao óbito em 2 dias. A partir de 1854 a catedral deixou de ser usada para essa finalidade.

Segundo memorial, de 1870 (acervo) - 14/05/2017


A exploração do nome e obras de Jane Austen parece ter começado cedo (apesar da extensa família, ninguém ficou com os direitos autorais). James Edward Austen-Leigh escreveu um livro sobre sua tia famosa, publicado em 1870, e com o lucro, mandou fazer uma placa de bronze, que fica em frente à tumba.

"Jane Austen. Known to many by her writings, endeared to her family by the varied charms of her character and ennobled by her Christian faith and piety was born at Steventon in the County of Hants, December 16 1775 and buried in the Cathedral July 18 1817. "She openeth her mouth with wisdom and in her tongue is the law of kindness"."

"Jane Austen, Conhecida por muitos por seus escritos, cara a sua família pelos vários encantos de sua personalidade e enobrecida por sua fé e piedade Cristãs nasceu em Steventon no Condado de Hants, em 16 de Dezembro de 1775 e foi enterrada na Catedral em 18 de julho de 1817. "Ela abriu sua boca com sabedoria e em sua língua está a lei da bondade"." *


Quiseram mais. Em 1898 fez-se uma campanha de doações, através de uma carta ao jornal The Times, assinada pelo Conde de Selborne, Lord Northbrook, W.W.B. Beach e Montague G. Knight de Chawton, para a confecção de um vitral em homenagem à escritora, que se juntaria aos dois memoriais já existentes. O design é de Charles Eager Kempe, e precisa ser descrito para ser entendido: há uma figura de Sto. Agostinho (Augustine em inglês, que tem uma forma abreviada de "St Austin", remetendo ao sobrenome de Jane); o rei Davi tocando sua harpa no centro; e na coluna inferior S. João, com seu evangelho, aberto nas primeiras palavras, "No princípio era o Verbo...". Uma inscrição em latim alusiva à escritora também foi incluída, que pode ser traduzida assim: "Lembrem-se no Senhor de Jane Austen que morreu em 18 de julho de 1817".

Pensam que acabou? Não. Há ainda quatro figuras carregando um pergaminho com sentenças em latim que fazem referência à natureza religiosa de Jane Austen.

Pode ter feito sentido na época, embora eu tenha minhas dúvidas (sempre acho esses vitrais obscuros), mas só com a legenda. E eu confesso que não reparei. Mesmo que se tente fazer uma fotografia de toda a janela, não há muito espaço (pelo menos para uma fotógrafa amadora) e as figuras não ficam tão nítidas. E mesmo que ficassem, quem vai achar que não se trata de mais um vitral do conjunto da catedral?

Vista parcial da janela (acervo) - 14/05/2017

A descrição da janela (acervo) - 14/05/2017

Não que ela não mereça toda e qualquer honra que lhe seja concedida. Apenas acho que faz toda a diferença quando isso acontece enquanto a pessoa está viva. Jane sempre dependeu da família para as mínimas despesas e para o básico, como a moradia. Há quem diga que o estresse decorrente da preocupação com sua situação agravou-lhe a doença. Ela foi a única que se estressou, pelo visto, já que o resto da família viveu bem mais.


O interior da catedral (acervo) - 14/05/2017

Mas quem se encantou com os textos produzidos por Jane Austen vai manter sua admiração e satisfazê-la da forma como puder. Ler e reler os livros, ver e rever os filmes, tentar adquirir itens que a evoquem... há um extenso mercado de livros que tratam de tudo que possa se relacionar à escritora, à época e lugares em que viveu, além de fan-fiction. Muitos textos interessantes têm aparecido e isso faz com que a memória não se apague.


Isso não tem fim... 

Celebrar quem ou o quê se ama é natural. E no caso, justificado. Vale a pena correr atrás desse sonho.


Winchester - 2017


* Traduções livres de minha autoria




Clarice: escrever é o mesmo processo do ato de sonhar: vão-se formando imagens, cores, atos, e sobretudo uma atmosfera de sonho que parece u...