domingo, 31 de julho de 2016

Gosto de visitar igrejas

O teto sob o domo da catedral de Santo Isaac, do qual pende uma pomba branca que representa o Espírito Santo (acervo)

Há igrejas ou locais de culto em todos os lugares por onde passo. Não importa se há uma religião predominante ou se a maioria da população se declara ateia, elas continuam presentes. E se é possível visitá-las, lá estou eu. Vou pela possibilidade da pausa para reflexão, pela arquitetura, pela história e pela cultura. Presente ou passado, a religião está intrinsecamente ligada à história dos povos e dos países. 

De acordo com a tradição, a Igreja Ortodoxa Russa tem origem em uma comunidade fundada pelo apóstolo André, que pregou na Ásia Menor e na Cítia, ao longo do mar Negro, chegando até o rio Volga e Kiev, onde está hoje a catedral de Santo André. Mais tarde, a princesa Olga de Kiev se converteu ao cristianismo, e depois, seu neto, Vladimir, o Grande, decretou que o Cristianismo Bizantino seria a religião oficial de Kiev. Antigamente era assim, por decreto. Continua sendo em alguns lugares do mundo, e bem que estão tentando fazer isso por aqui e acolá. Essa fábula de estado laico...

A igreja russa tem muito mais em comum com o catolicismo romano que com as igrejas evangélicas, já que Maria tem nela um lugar especial como a Mãe de Deus. 

Outra característica é o uso de ícones (imagens sagradas). Os ícones russos são tipicamente pinturas em madeira, usualmente pequenas, mas que podem ser bem maiores em igrejas e mosteiros. Alguns eram feitos de cobre. Nas igrejas russas, a nave é separada do santuário por uma iconóstase, ou tela de ícones, uma parede com portas duplas no centro. Eles são considerados o Evangelho em pintura, e assim recebem atenção especial para garantir que a palavra seja fielmente transcrita.

A catedral de Sto. Isaac já foi a principal igreja da cidade de S. Petersburgo e a maior da Rússia. Foi construída entre 1818 e 1858 pelo arquiteto francês Auguste Montferrand, para se tornar um dos mais impressionantes marcos da capital do império. Ainda hoje, seu domo dourado domina a paisagem da cidade. Embora seja menor que a recém-renovada igreja do Sangue Derramado em Moscou, suas fachadas e interiores são mais impressionantes. O domo principal chega a 101,5 m e é folhado com puro ouro.

Lateral da catedral, com destaque para a fachada e o domo (acervo)

A igreja é dedicada a Sto. Isaac da Dalmácia, um santo patrono de Pedro, o Grande, nascido no dia da festa do santo. Essa é a quarta igreja a ser construída no local.

Primeira igreja (Wikimedia Commons, domínio público)
https://en.wikipedia.org/wiki/File:First_St._Isaac%27s_church.jpg


As fachadas são decoradas com esculturas e colunas imensas (feitas com peças inteiras de granito vermelho), enquanto o interior é decorado com ícones em mosaico, pinturas e colunas feitas de malaquita e lápis lazúli. Uma grande janela de vitrais coloridos representando o Cristo Ressuscitado se destaca no altar principal.

A igreja desenhada para acomodar 14 mil fiéis (sempre em pé) foi fechada no início dos anos 1930, e reaberta como museu. Atualmente, serviços religiosos acontecem somente em ocasiões especiais (http://www.saint-petersburg.com/cathedrals/st-isaacs-cathedral/).

A iconóstase, decorada com colunas de malaquita e lápis-lazúli. Ao fundo, o vitral com a imagem do Cristo (acervo)

Iconóstase de uma das capelas laterais (acervo)


Natividade da Virgem, afresco (acervo)


O ícone milagroso da Mãe de Deus de Tikhvin (acervo)


Já mencionei a importância dos ícones. Eles são considerados milagrosos quando "aparecem" em algum lugar. É o caso dessa imagem da mãe de Jesus, chamada Theotokos (aquela que carregou a divindade no ventre). Acontece que a autoria do ícone original de Tikhvin é atribuída a S. Lucas, o evangelista. Em 1383, setenta anos antes da queda do império bizantino, pescadores do lago Ladoga, no principado de Novgorod, Rússia, avistaram o ícone sobre o lago, cercado por uma luz radiante. Um manuscrito russo do século 16 relata que foi a própria Theotokos quem desejava que seu ícone fosse retirado de Constantinopla, onde estava desde o século 5. 

Daí em diante, passou por uma série de peripécias, até chegar à cidade de Tikhvin, a cerca de 200 km de S. Petersburgo, onde foram construídos um mosteiro e uma igreja de pedra em 1560 para abrigar a imagem. E mais milagres se atribuem ao ícone: salvação de um ataque da Suécia, em guerra com a Rússia; incêndios; e até sua preservação diante da Revolução Bolchevique. Aí na Segunda Guerra Mundial, o exército alemão passou a mão no ícone, que foi parar nas mãos de um bispo, que acabou levando-o para os EUA. Finalmente, após a queda do regime comunista e com a ressurreição da Igreja Ortodoxa Russa, depois de mais de 50 anos o ícone retornou ao lar.

Ao longo dos séculos, sua fama se espalhou. Cópias começaram a adornar igrejas, e algumas delas também eram tidas como fontes de milagres. (http://oca.org/saints/lives/2013/06/26/101821-appearance-of-the-tikhvin-icon-of-the-mother-of-god)

Acho impossível deixar de ficar fascinada por essas histórias. Perco um neurônio a cada vez que um psicopata destrói um monumento histórico por alguma razão sem pé nem cabeça, como, por exemplo, o que fizeram os talibãs no Afeganistão e os loucos no Iraque e na Síria. Nem vou contar quantos neurônios perco a cada vida desperdiçada.



sábado, 30 de julho de 2016

Literatura e viagem

Na muralha às margens do rio Neva, a vista da ponte 

Adoro associar viagem com livros, filmes, documentários, ou artigos publicados em qualquer mídia. Conhecer algum lugar virtualmente e depois ter a oportunidade de ir lá, ou vice-versa é como se estivesse sempre viajando. É a mesma sensação de quando vejo fotos, minhas ou de outros, ou ainda quando escrevo sobre o assunto, pois sempre pesquiso muito antes e depois de viajar. Se deixo de fazer o dever de casa antes, sei que vou perder alguma coisa na compreensão do que vejo, e me arrepender depois. É tanta coisa interessante que se aprende, que não cabe numa vida, e eu não sei exatamente o que fazer dessas informações. Aproveito para escrever meu diário de bordo como prática de memória. 

Não sei quando foi a primeira vez que S. Petersburgo surgiu na minha cabeça, mas já sonhava com essa cidade há tempos, e quando recebi a proposta de ir lá, parece que foi a conclusão de uma sucessão de coincidências: quando aconteceu a Copa do Mundo no Brasil, em 2014, visitei a "Casa da Rússia", e guardei de lembrança meu crachá com a foto da cidade (que só achei agora, nem me lembrava mais disso). Depois, li um livro de ficção que tinha ali seu desfecho. 

O personagem principal

"seguia em direção aos imensos portões de ferro que conduziam aos degraus da catedral de Pedro e Paulo, os topos adornados com pontas de ouro.

Imensos candelabros de cristal dominavam o centro do espaço. Não havia bancos. Ninguém se sentava em uma igreja ortodoxa russa. Havia até um espaço livre, um remanescente da Rússia czarista. Ficava antes do altar, envolvido por um rico tecido finalizado por uma cobertura de ouro. Era onde o czar se posicionava.

Ao redor dele havia tumbas de mármore branco com cruzes de ouro, o último local de descanso dos líderes da Rússia."

Ele viu o teto 

"verde e branco sobre sua cabeça. Cada polegada da catedral era pintada ou dourada. Mas ele não estava à procura de beleza."

O objeto da busca do herói estava parado 

"na frente de uma corda de veludo olhando para o interior de uma sala.

- Este é local de descanso dos Romanov, um guia turístico dizia. - Com sorte, poderemos nos aproximar."

"Os canhões do Bastião de Naryshkin eram disparados todos os dias ao meio-dia. E todos os dias ao meio-dia os turistas gritavam e se viravam e, por um momento, tinham medo."

Dizia Jung que sincronicidade era uma coincidência significativa entre eventos psíquicos e físicos. Não sou psicanalista ou psicóloga, nem sei se é o caso ou só coincidência. Tanto faz, porque o resultado é o mesmo: fiquei intrigada, e fui à catedral conferir. 

A catedral (acervo)

A primeira coisa que chama a atenção quando se adentra o forte são, realmente, as torres douradas da igreja e do Grande Mausoléu Ducal. 

A catedral é a igreja mais antiga da cidade e o segundo edifício mais alto e foi construída entre 1712 e 1733. Está profundamente ligada a sua história e à dinastia Romanov, a segunda do país, que reinou de 1613 até a revolução russa em 1917. Ali estão enterrados todos os governantes da Rússia desde Pedro, o Grande. Já o Mausoléu foi concebido em 1896 para receber os restos mortais dos familiares que não reinaram.

Fica na fortaleza de mesmo nome, construída numa pequena ilha às margens do rio Neva. O acesso principal é pela ponte de São João (Ioannovsky), que leva ao portão de São João, também conhecido como o portão de Ivan. É possível entrar pela ponte Kronwerk, não muito distante da estação de metrô Sportivnaya.

Os candelabros (acervo)


Não há bancos... (acervo)


O espaço do czar (acervo)


As tumbas dos czares (acervo)


O teto verde e branco, com pinturas e molduras douradas (acervo)




Na capela de Santa Catarina de Alexandria, estão as tumbas de Nicolau II, família e servos


A cena mais impactante do livro se dá quando os canhões disparam. Infelizmente, não pude testemunhar o possível temor provocado por eles, pois não consegui cronometrar a visita com tal rigor. Alguma flexibilidade devemos ter em viagem, ou enlouqueceremos. De resto, tudo confere. Com a diferença de que o personagem estava num clima de suspense, e eu apenas de deslumbramento. Apesar da história trágica da família Romanov, a arte humana ainda se impõe.



quinta-feira, 28 de julho de 2016

Se é preciso comer, que seja gostoso

Dachniki, entrada (acervo)


Reza a lenda que ir ao supermercado de barriga vazia não faz bem nem pra saúde nem pro bolso: a gente acaba comprando mais quantidade e mais calorias. Posso dizer que acontece a mesma coisa ao tentar escrever sobre comida quando estou com fome. Imagine-se ver uma foto de um belo prato de estrogonofe (ou qualquer outra coisa de que se goste) com um estômago oco? É triste. Acho que até faz sentido cometer loucuras nessa situação. 

Bom, eu gosto mesmo desse prato que se tornou comum por aqui, e tem origem na Rússia dos meados do séc. 19, de acordo com a Wikipedia (https://en.wikipedia.org/wiki/Beef_Stroganoff). A primeira receita conhecida data de 1871, e descreve o prato como cubos de carne ligeiramente enfarinhados e salteados (nem sabia que 'sauté' era salteado), num molho de mostarda e água fervente, finalizado com uma pequena quantidade de sour cream (preciso aprender a fazer isso, adoro). Nada de cebolas ou cogumelos. Uma outra receita, já de 1912, acrescenta cebolas e extrato de tomate (de preferência, sem pelo de rato), servindo o prato com tiras de batatas fritas, consideradas o acompanhamento tradicional na Rússia (não foi o caso). A enciclopédia gastronômica Larousse de 1938 inclui tiras de carne e cebolas, seja com mostarda ou extrato de tomate opcionais.

Depois da queda do império russo, a receita se popularizou pelo mundo. A versão brasileira inclui pedaços ou tiras de carne (normalmente filé mignon) com molho de tomate, cebolas, cogumelos e creme de leite bem espesso. Também pode ser feito com tiras de peito de frango ou camarão, e costuma ser servido com batata palha, mais o arroz branco. Não vamos falar de outras variações, especialmente daquelas que permitem substituir o molho de tomate por ketchup. Uma coisa é ser criativo, outra é estragar o prato.

Toda essa introdução para explicar a importância de se escolher um restaurante para se provar o estrogonofe "original". Pra mim, comida é uma oportunidade excelente de se chegar mais perto de uma cultura. Foi assim que chegamos ao Dachniki, número 20, na Nevsky Prospect. 

Pra conferir o cardápio na entrada (acervo) 

Onde quer que se leia sobre o restaurante, as descrições são parecidas, relatando que possui uma atmosfera soviética autêntica, que é um favorito entre russos e estrangeiros, e oferece uma culinária caseira: pelmenis (uma massinha recheada de carne, parecida com um ravióli), panquecas, sopas tradicionais, estrogonofe... Tudo isso num ambiente decorado por elementos de uma casa de campo russa, o que a gente descobre já quando abre a porta externa, e escuta um galo cantando ou uma vaca mugindo a título de campainha. 

A carinha de fazenda (acervo)

Descemos uma escada para chegar ao restaurante. Na entrada, um obstáculo: a língua. Em todos os restaurantes, fala-se um mínimo de inglês. Nesse, a hostess fugiu à regra. Limitou-se a escrever o tempo de espera num pedacinho de papel (30 minutos), e a olhar para nós com cara de agente de imigração de aeroporto. Não ofereceu uma opção, como esperar no bar. Era vai e volta em 30. Fomos, né? Demos uma volta pela área, ali no final da Nevsky, que não tem nada pra ver (em 30 minutos). 

Nada aqui... mas pelo menos o tempo estava bom, o céu bonito... (acervo)


... mas na transversal deu pra conseguir um flagrante de uma policial... (acervo)

Mas graças à intuição de minha amiga, em 20 minutos fomos checar se não havia um espaço para esperarmos, e demos sorte de encontrar mesa. Uma pessoa mais simpática nos recebeu à porta. 

Tinha área de bar, com os banquinhos pra facilitar a espera (acervo)

A simpatia continuou no resto do atendimento. O inglês não é fluente, porém suficiente para o entendimento, tem cardápio em inglês pra facilitar, e a boa-vontade deles é imensa. 

Cardápio bilíngue (acervo)

Passamos então à melhor parte: comer. O prato principal já estava definido, não havia o que pensar. Uma entrada? Tinha lido sobre os palitos de pão torrado com queijo e alho. Olha, só experimentando. Show.

Os palitos e o refresco gostosinho de alguma fruta vermelha diferente (acervo)

O estrogonofe russo (acervo)

Qual o veredito sobre o estrogonofe? Melhor que já comi. Carne de ótima qualidade (o que raramente é verdade por aqui), nada daqueles pedaços boiando num molho suspeito (o que botam ali para engrossar? creme de leite não é, porque está muito caro... suspeito que seja amido de milho...), ou daquela montanha de arroz branco sem graça, e uma batata frita gordurosa. O que comi foi um prato simples e saboroso, sem disfarces. Por um preço extremamente acessível.

E o ambiente? Nesse restaurante estilo cantina (stolovaya), realmente se tem uma impressão de casa rústica. Se corresponde exatamente a uma casa do interior russo, não posso dizer, mas certamente parece. Aquele jeito de coisa antiga, século 20, década de 50 talvez. Tem um rádio antigo numa prateleira... 

E reparem nos troncos de árvore que formam a parede... (acervo)

Tem parede forrada de madeira com placa de rua...



O jeitinho doméstico da decoração, com a estante com as fotos de família e outros objetos do dia-a-dia...



E tinha bar, com bancos apropriados para a espera até liberar uma mesa. O restaurante não é muito grande, e talvez fosse a hora de almoço comercial. Como aqui, em certo horário, quando fica praticamente impossível conseguir mesa em restaurante no centro da cidade. 



No final das contas, o resultado foi positivo. A vaca que mugia e o galo que cantava a cada vez que a porta da rua se abria, e a hostess que não sabia se comunicar não comprometeram a boa experiência resultante da combinação de se estar numa cidade incrível, um ambiente que busca refletir um pouco da cultura local tanto pela decoração como pela comida, a qualidade do produto, e a gentileza das pessoas que te servem. É um conjunto poderoso, especialmente quando rotineiramente não se tem nada disso. 





quarta-feira, 27 de julho de 2016

Perdida no museu

Biblioteca do czar Nicolau II (acervo)

Como se perder em um museu russo: fácil. É só não ter senso de direção, e descobrir que as senhorinhas que tomam conta das salas (são todas mulheres, e todas pra lá da lei do idoso) só falam russo.

Daí que chegamos ao museu, eu e minha amiga, e como costumamos fazer, estimamos o tempo de visita, marcamos o local de encontro ao término, para cada uma fazer o seu roteiro. Assim feito, nos encontramos, e ela me pergunta se vi a biblioteca do czar Nicolau. Faço cara de paisagem, e digo pra ela me dar 15 minutos que eu voltava já. S. Petersburgo não é ali na esquina. Sei lá se vou poder retornar. 

Nem me lembro se ela me deu alguma instrução, mas não ia adiantar muito. Não costumo guardar pontos de referência, e ir parar onde não devo é recorrente. Mas me lembrei que uma amiga tinha me falado que algumas palavras em russo têm uma sonoridade parecida em português. Duas delas: biblioteca e café. E lá fui eu, seguindo direções e tentando me comunicar com as senhorinhas, numa conversa de surdos. Não rolou, salta a palavra mágica: biblioteca? E elas me apontavam para onde ir. Até que cheguei na última, que, muito prestativa, se levantou, e me levou até a porta. 



Foi uma correria, mas a emoção que sinto com bibliotecas e livrarias justifica. Queria morar nelas. 

Claro que não sabia nada sobre ela, e tive de pesquisar. Tarefa ingrata. Só há uma breve descrição no site do museu. Concluí que pode haver livros ou artigos com mais detalhes, mas devem estar todos escritos em russo. Deixa pra lá.

O que descobri é que a biblioteca, que fazia parte dos aposentos privados do último imperador da Rússia, Nicolau II, que ascendeu ao trono em 1894, foi criada por Alexander Krasovsky. Foi executada no estilo neogótico inglês, e de acordo com as percepções românticas da Idade Média. Há nela elementos que vão do rococó ao art nouveau. 

O teto em nogueira é decorado com enfeites em quatrefoils (similar a um trevo). As estantes ficam nas paredes e na galeria superior, que se alcança por uma escada. O interior com seus painéis decorativos em couro, a lareira monumental, e as janelas altas com rendilhados transportam os visitantes aos tempos da Idade Média (quer dizer, como se imagina, algo assim como um ambiente de 'O nome da rosa', de Umberto Eco).

Quatrefoils no teto (acervo)

Estante em baixo... (acervo)

... e na galeria superior (acervo)

A escada (acervo)

A lareira (acervo)

A mesa, onde antes se dizia que ficava uma escultura de porcelana retratando o czar, agora está vazia. Há um busto de Catarina em uma outra mesa perto da escada. Acho justo.

Busto da imperatriz (acervo)

Vale destacar que a imperatriz Catarina, a Grande, era uma ávida colecionadora de arte e leitora, e fez de tudo para aumentar os acervos do império. Obras provenientes de toda a parte chegaram ao Hermitage, e a biblioteca só fez crescer. Até o império dar lugar à revolução, havia cerca de 15 mil volumes, com todo tipo de assunto, religião, filosofia, história, crônicas da família imperial, literatura, ciência, agricultura, e outros.

Fiquei aqui imaginando quantos livros deve haver nessa biblioteca, comparando com a nossa Biblioteca Nacional, fundada em 1810, com livros trazidos de Portugal na bagagem de D. João VI. Cerca de 200 anos depois, e agregados outros tantos livros, é a mais importante da América Latina, reunindo cerca de 9 milhões de títulos. Inclusive uma Bíblia de Mogúncia, de 1462, incunábulo impresso da tradução em latim por Gutenberg.

Foi quando descobri que S. Petersburgo tem sua Biblioteca Nacional, não somente a mais antiga do país, mas também sua primeira biblioteca pública. É uma das maiores do mundo, e tem a segunda coleção mais rica da federação russa, um tesouro do patrimônio cultural nacional. Foi criada em 1795 por ela, sempre ela, Catarina, a Grande, cujas coleções particulares incluíam os acervos pessoais de Voltaire e Diderot, que adquiriu de seus herdeiros. A coleção de Voltaire é ainda, nos dias de hoje, um dos destaques do acervo.

E quantos itens tem essa biblioteca? 36.475.000, sendo 15 milhões de livros. Inimaginável.

Esgotado o tempo de deslumbramento, e na impossibilidade de ficar por ali lendo ou pegar algum livro emprestado, me restou correr de volta ao ponto de (re)encontro com a amiga. Que, por sorte, é compreensiva. Naturalmente, me perdi. Há mais de uma saída, parece. Em vez de voltar aonde tinha saído na primeira vez, fui parar em outro lugar, que dava direto na rua. O jeito é retroceder, e novamente recorrer à minha fluência em russo, desta vez à outra palavra mágica: café? 

Resumo: as senhorinhas são simpáticas, mas todas tontinhas (exceto a que me guiou à "biblioteka"). E eu, claro, sou mais tontinha ainda, mas consegui chegar ao "kofe". Muito feliz.

Ah, e café se escreve assim (no alfabeto cirílico) - placa na Nevsky (acervo) 






terça-feira, 26 de julho de 2016

Continuando a visita ao Hermitage

Leonardo da Vinci, Madonna and Child, Sala Leonardo da Vinci (acervo)
Litta Madonna, obra que teria sido produzida em Milão, para onde o artista se mudou em 1482, no período que se tornou conhecido como Alta Renascença. 

Mesmo que o museu não esteja expondo todas as suas três milhões de peças (qual o espaço necessário para espalhar tudo isso?), parece óbvio que ver todas as salas e suas peças requer um tempo e uma atenção consideráveis. Checando a visita virtual do site do museu (http://www.hermitagemuseum.org/wps/portal/hermitage/explore/panorama/panoramas-m-3/?lng=en), contei 390 salas. Pensem que cada uma vai conter, digamos, umas 10 peças. E que a própria arquitetura e os detalhes decorativos - paredes, colunas, pisos, portas, janelas, afrescos, tetos - também integram o conjunto. Não consegui calcular ainda quanto tempo seria necessário para realmente ver esse museu, quando não passamos menos de 1h30 vendo uma exibição temporária no Rio de Janeiro, com cerca de 70 peças, e nem todas com a mesma importância artística das que estão expostas no Hermitage.

A gente bem que tenta, mas realmente, é preciso (minha opinião, pelo menos), estipular um limite. Não falo pelos entendedores de arte, o que não é o meu caso. Também não falo por quem só vai a museu pra bater ponto. Eu realmente gosto de ir, seja pelas obras ou pela arquitetura, pela história ou pelo significado de tudo, tanto local como para a humanidade. Sem saber dizer porquê, tenho minhas preferências. Nem vou ligar se me chamarem de ignorante. Prefiro me considerar uma curiosa, e principalmente, uma eterna aprendiz.

Mas pelo menos um critério eu passei a seguir, mesmo que às vezes me parta o coração ou sacrifique minha personalidade obsessiva: em geral, passo batida pelas áreas de peças gregas, romanas e egípcias. Vamos dizer que, a grosso modo, as múmias são muito parecidas umas com as outras. Ou que quem viu uma Vênus ou Afrodite de Milo e a Vitória de Samotrácia no Louvre (acho deslumbrantes), não vai sofrer se não vir outras tantas esculturas de deusas gregas. Escolhas, escolhas, a vida é feita delas.

Temos então de nos contentar em reservar nossa atenção para as obras ímpares, e torcer para não nos arrependermos depois se deixarmos de ver alguma coisa. Quase aconteceu comigo, quando fui por um caminho que não passava pela biblioteca de Nicolau. O que, em se tratando de moi, é inconcebível. Quando cheguei no local de encontro combinado com minha amiga, e ela mencionou a dita cuja, lá fui eu de volta em disparada pra achar a biblioteca. Uma aventura que fica pra contar depois: tentar me comunicar com as senhorinhas que fazem a guarda das salas. Nenhuma fala outra língua que não o russo.

Passemos às salas. Vamos de Itália, Holanda e Flandres.


Sala Leonardo da Vinci (acervo)


Pietro Tacca, 1577-1640, Nessus and Deianira (acervo) 


Detalhe da Sala Majolica (acervo)


Raphael Loggias (acervo)

O modelo para as loggias que o arquiteto Giacomo Quarenghi criou para Catarina II nos anos 1780 foi a celebrada galeria no Palácio do Vaticano que continha afrescos com desenhos de Rafael. Os arcos da galeria contêm um conjunto de pinturas que têm como tema as escrituras sagradas, conhecidas coletivamente como a "Bíblia de Rafael". As paredes são decoradas com ornamentos grotescos, que surgiram na pintura de Rafael por influência das ruínas do palácio de Nero.

Rubens, Head of an Old Man (acervo), Sala Rubens

No projeto de Leo von Klenze para o Novo Hermitage, uma sala foi designada para abrigar as pinturas holandesas e flamengas. Hoje contém obras do grande artista flamengo Peter Paul Rubens (1577-1640). A coleção, que inclui 22 pinturas e 19 desenhos, cobre todos os períodos da carreira do artista. Talentoso retratista, mestre das composições, gênio tanto nas paisagens como nas naturezas-mortas, é realmente um presente, uma oportunidade rara poder apreciar qualquer de suas obras.

Dentre as obras-primas do artista, estão no museu 'Perseu e Andrômeda', 'Baco', 'Retrato de uma Dama de Companhia da Infanta Isabela', 'A união entre a Terra e a Água' e 'A descida da Cruz'.


Rubens, Statues of Emperors of the Hapsburg Dinasty, 1634 / Head of a Franciscan Monk, 1615-17 (acervo)

Rubens, A estátua de Ceres, 1612-15 e outros quadros (acervo)

Peter Paul Rubens foi um pintor e diplomata no séc. 17 que estudou com diversos mestres. Viajou para a Itália, onde experimentou o impacto da arte clássica representada por mestres italianos como Caravaggio. Em 1609 foi designado pintor da corte do Arquiduque Albrecht de Áustria, em Bruxelas. Simultaneamente, aceitou comissões para executar grandes obras em igrejas e prédios públicos.

Sua casa e oficina em Antuérpia ainda podem ser visitados nos dias de hoje. O que vai ficar para uma futura oportunidade, se acontecer. Por hora, ficamos com a graça de contemplar sua arte onde pudermos encontrá-la. Como não amar um museu que tem uma "Sala Rubens"? Ou uma "Sala Leonardo da Vinci"?








segunda-feira, 25 de julho de 2016

Realizando sonhos: conhecendo o Hermitage

A entrada (acervo)

O Museu Estatal do Hermitage é Patrimônio Cultural da UNESCO, como integrante do conjunto da cidade de S. Petersburgo, e muitas razões há para isso. Tem história? Sim. Arquitetura? Sim. Arte? Sim. Beleza? Sim. Para mim, a principal joia da coroa que é essa cidade fascinante. Um dia só não é suficiente para ver a pequena parte do acervo de três milhões de peças que possui. Três milhões! Certamente vale visitar, e voltar. Um dia, quem sabe...

Vamos de ônibus, porque a pé é um pouco longe, e andar de ônibus em S. Petersburgo é fácil e barato. Pegue na Nevsky Prospect, e aguarde a trocadora (só vi senhorinhas) vir te cobrar. 

O museu é um dos mais antigos do mundo. Foi fundado em 1764 pela imperatriz Catarina, a Grande, e está aberto ao público desde 1852. Tem a maior coleção de pinturas do mundo. Experimente a visita virtual, e vai levar horas (http://hermitagemuseum.org/wps/portal/hermitage/).

O museu consiste de cinco prédios históricos, localizados à margem do rio Neva, incluindo o Palácio de Inverno, antiga residência dos imperadores russos. Este foi construído em 1754-1762 por Francesco Bartolomeo Rastrelli. Em 1764-75, por ordem de Catarina, a Grande, o Pequeno Hermitage foi erigido por Jean-Baptiste Vallin de la Mothe e Yuri Felten. Em 1771-87, Yuri Felten construiu o Grande Hermitage. Em 1783-87 foi a vez do teatro Hermitage. Para completar o conjunto, em 1842-51 Leo von Klenze construiu o Novo Hermitage para o museu do imperador.

As coleções do museu têm aumentado há 2 séculos e meio, e agora incluem 17.000 pinturas, 600.000 trabalhos gráficos, mais de 12 mil esculturas e 300 mil trabalhos de artesanato, 700 mil artefatos arqueológicos, e 1.000.000 de peças de numismática. No Hermitage podem ser vistas obras-primas de Leonardo da Vinci, Rafael, Ticiano, Rembrandt, Rubens, Matisse e Picasso. Além da melhor coleção do mundo do barroco holandês, pinturas francesas dos séc. 19 e 20, arte decorativa europeia ocidental, uma exibição de ouro cita incomparável, e joias da Grécia antiga.

Se não fosse tão provinciano, uma boa e sincera maneira de andar pelo museu (e descrevê-lo) seria com aaaahhhhs e oooohhhhs. Mas, claro, não somente atrapalharia os demais visitantes, como iriam me achar doida, quiçá me expulsar do local. Melhor fingir que tudo aquilo é normal, que não é uma expressão da capacidade humana de fazer arte, de expressar uma visão de beleza, ainda que com um certo excesso, que parece que faz parte do jeito local. Lógico que nessa hora também não vamos pensar que para existir toda essa riqueza foi necessário um grande sacrifício do povo. 

Para falar do Hermitage, tem de ser por partes, mesmo não tendo conseguido ver tudo. Vamos entrando.

Subindo a escada principal do Palácio de Inverno (acervo)

A escadaria principal do Palácio de Inverno é chamada de Jordão porque na festa da Epifania o czar desceu esses degraus para a cerimônia da "Bênção das Águas" do Rio Neva, uma celebração do batismo de Cristo no rio Jordão. A escadaria é uma das poucas partes do palácio que mantém o estilo original do séc. 18. As imensas colunas de granito cinza, no entanto, foram adicionadas na metade do séc. 19.

Ela ficou em péssimo estado depois de um incêndio que atingiu o palácio em 1837, mas Nicolau I determinou ao arquiteto Vasily Stasov, encarregado da reconstrução, que a restaurasse de acordo com o desenho original de Francesco Bartolomeo. Stasov fez duas pequenas mudanças: substituiu os corrimões de bronze por mármore branco e as colunas cor-de-rosa por granito cinza.


Teto sobre a escadaria Jordão, retratando os deuses do Olimpo (acervo)


Alto da escadaria Jordão (acervo)


Os aposentos de Pedro, o Grande - Pedro I com Minerva, Jacopo Amigoni, 1732-1734 (acervo)

A Sala Menor do Trono, também conhecida como a Sala do Memorial de Pedro, o Grande, foi criada em 1833 para o czar Nicolau I pelo arquiteto Auguste de Montferrand. Também foi atingida pelo incêndio de 1837, e recriada por Vasily Stasov exatamente como antes. Concebida num estilo barroco flexível, o trono fica num recesso semicircular diante de uma tela ornamental, apoiada em duas colunas de jaspe, com um quadro dedicado a Pedro I. 

As paredes são recobertas com veludo vermelho, enfeitadas com águias entremeadas de fios prateados. Há outras pinturas no aposento, mas o destaque vai para o trono em prata dourada, de 1731, executado em Londres pelo ourives anglo-francês Nicholas Clausen. 

Nessa sala, na época dos czares, diplomatas se reuniam no Ano Novo para cumprimentar o imperador. O aposento mantém a decoração original.


Salão Heráldico (acervo)

O Salão Heráldico foi projetado nos anos 1830 para grandes recepções no Palácio de Inverno. As entradas do salão são flanqueadas por grupos de esculturas de antigos guerreiros russos, que portam escudos com as armas de suas províncias, daí seu nome. Os escudos ainda podem ser vistos nos lustres. As colunas ornamentadas em branco e dourado visam criar uma impressão de grandiosidade majestosa. E como impressionam! 

Aqui entram de novo os aaaahhhhs e oooohhhhs. É uma grandiosidade que evoca o Palácio de Versalhes, na França. O que não deve ser coincidência, levando-se em consideração a personalidade da imperatriz Catarina, a Grande. Mas voltaremos a essa figura fascinante e poderosa mais tarde.


A parte superior da escadaria principal (acervo)

A entrada para turistas estrangeiros é mais cara que para os cidadãos da Rússia e Belarus. Mas é gratuita na primeira quinta-feira de cada mês para todos os visitantes, e todos os dias para estudantes e crianças. O museu fecha às segundas-feiras. Visitantes individuais entram pelo Palácio de Inverno. Compre o ingresso pela internet (https://www.hermitageshop.org/tickets/). É mais prático, e realmente funciona.


Clarice: escrever é o mesmo processo do ato de sonhar: vão-se formando imagens, cores, atos, e sobretudo uma atmosfera de sonho que parece u...