quinta-feira, 6 de março de 2014

Livros, amigos, lembranças, I've loved them all



Confesso que tenho uma tendência escapista. Metade de mim está enraizada e a outra metade está voando ou tentando voar. A parte que gosta de voar é resquício da criança que eu fui, e se encontra hoje, como sempre fez, nos livros, e nas ocasionais viagens. A parte enraizada é a que foi aprisionada pelas obrigações, pelas necessidades, pela realidade. Às vezes essas metades não se entendem muito bem. Nos dias de hoje, em que me sinto mais próxima do fim da vida, cronologicamente falando, a vontade de voar é enorme, mas a realidade se impõe. Só que essa realidade incomoda cada vez mais. Se, por um lado, compreendo melhor nossas insuficiências como seres humanos, tenho tolerância zero para desrespeito a direitos humanos básicos. Reclamo, discuto, mas meu alcance é nenhum, então, na impossibilidade de mudar o rumo do estouro da boiada, racionalizo e saio da frente. É verdade, não tenho disposição pra concorrer a cargo político, sair em passeata, correr da polícia. Ou, como a personagem central desse livro, correr de um lado para o outro, inclusive países em conflito, até sendo ferida, para ver seus ideais realizados.

Dentre as suas muitas realizações (melhor ler o livro), Mary Ann Schuwalbe lutou até o fim de sua vida para fazer construir uma biblioteca no Afeganistão. Não preciso dizer as dificuldades que ela deve ter enfrentado, além das relatadas no livro. Nós podemos escolher entre um e-book e um livro tradicional. Muitas regiões do planeta não possuem sequer escolas, quanto mais bibliotecas. E também nem preciso dizer que as meninas são quem menos acesso têm à educação. Mas o foco aqui é Mary Ann, que viveu para ajudar, e não se dava o direito de reclamar de nada, mesmo quando foi diagnosticada com um câncer incurável.

Will Schuwalbe, filho de Mary Ann, saiu-se com a ideia de criar esse "clube do livro", que foi a forma encontrada para se aproximar da mãe enquanto iam às sessões de quimioterapia, consultas, etc.

Percorre-se o livro com emoção e curiosidade enquanto mãe e filho discutem livros e refletem sobre a vida a partir de suas conclusões. Sabe-se que a doença é letal, mas, como na vida real, tentamos negar esse fato até o último momento, esperando que seja um engano, que não, a qualquer momento os médicos vão nos dizer que o diagnóstico estava errado, ou que descobriram uma cura, e voilà, respiramos aliviados, celebramos, e esperamos o curso normal (normal?) da vida, até quando os deuses decidam dar-lhe um fim.

E assim, à medida que a doença vai progredindo, também parece que a relação entre mãe e filho se aprofunda, ou se consolida. Não há faz-de-conta, não se trata de livro de auto-ajuda. Penso que eles tinham a fundação de um bom relacionamento desde a infância, e o autor-filho quis, com esse livro, mostrar como ele pôde aproveitar os últimos anos da mãe, e o fez estando presente, como ele mesmo reconheceu ao final. Não sei se ele percebeu isso: o conceito budista de meditação (que eu não domino, por sinal, porque minha mente vagueia mais do que nuvem) é o de estar presente, consciente, prestando atenção ao que ocorre. Chega um certo momento em que ele menciona isso, já ao final do livro, mas, a meu ver, ler os livros com a mãe, estar com ela durante as sessões de quimioterapia, que se prolongavam por muitas horas, demonstra a presença. É claro que ele também queria armazenar tantas lembranças da mãe quanto pudesse na memória, mas a emoção, na maior parte das vezes é momentânea, irreproduzível. Creio que o livro tem esse objetivo. Homenageia e evoca a memória da mãe, e, quem sabe, ocasionalmente, para o autor e para aqueles que conheceram Mary Ann, traz à tona uma emoção.

Não é assim que funcionam os livros? 

Há uma discussão entre Will e Mary Ann, já que ela prefere os livros tradicionais e ele os e-books. Essa é uma discussão sempre corrente. Eu amo livros e tenho os dois tipos. Não tenho a menor intenção de me desfazer de todos os meus livros tradicionais, nem de deixar de comprá-los. Deixo a meus filhos essa tarefa. Espero que no fim da minha vida, eles possam relatar a mesma coisa que Will em seu belo testemunho (só registrando que o nível de leitura deles está muito acima do meu):

"Quando terminei, olhei à minha volta para o quarto dos meus pais - e para mamãe, descansando relativamente em paz, porém, com aquela respiração áspera que significa que não resta muito mais tempo. Ela estava cercada de livros - uma parede de estantes, livros no criado-mudo, um livro ao seu lado. Ali estavam Stegner e Highsmith, mann e Larsson, Banks e Barbery, Strout e Némirovsky, o Livro da Oração Comum e a Bíblia. As lombadas eram de todas as cores, e havia livros de bolso e de capa dura, livros que haviam perdido suas sobrecapas e outros que nunca tiveram uma.

Eles eram os companheiros e professores da minha mãe. Tinham lhe mostrado o caminho. E ela podia olhar para eles enquanto se preparava para a vida eterna que sabia que esperava por ela. Que conforto alguém podia ter olhando para o meu leitor digital sem vida?"

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