quinta-feira, 5 de julho de 2018

Chocolate

O caminho do chocolate (foto do acervo)

Às vezes penso que a vida só fica interessante quando viajo. Nem vou especular sobre os possíveis motivos para isso. Imagino que seja pela mesma razão por que gosto de ler. O dia-a-dia é tão tedioso ou algumas vezes tão ruim que tentamos encontrar uma forma de fugir dele. Não vejo melhor forma de fazer isso que recorrendo à arte, à literatura, ou, quando possível, às viagens. A gente sabe que tem que voltar, cair na realidade, mas enquanto se transita por um mundo diferente, o resto fica em compasso de espera. Ainda estou esperando a oportunidade de testar essa outra realidade por tempo mais prolongado. Enquanto isso não ocorre (minha esperança ainda não desapareceu), aproveito as ocasiões em que me vejo diante daquilo que entendo como o melhor que os humanos podem produzir. Aprecio a beleza natural, mas sou, definitivamente, uma pessoa urbana. 

Consideremos essa invenção maravilhosa que é o chocolate, que vem lá do México, com evidências de seu uso em 1900 a.C. pelo povo Olmeca. O 'kakawa' dos Olmecas virou 'chocolatl' na linguagem dos Astecas, e daí seguiu para a língua espanhola e para o mundo. Pensamos em chocolate como as barras, trufas, a bebida quente ou gelada, mas nas origens não era assim. Mesmo hoje é difícil imaginar que aqueles pedacinhos super amargos que resultam do processamento das sementes acabem virando uma daquelas delícias que conhecemos hoje.


Chocolate: a origem (acervo)

Chocolate pode engordar, causar alergia, conter propriedades antioxidantes, quem sabe proteger o sistema cardiovascular. Tudo depende da quantidade. Fala-se em "vício". Será? Chocolate é versátil. Os maias o misturavam com pimenta e baunilha, para conter seu amargor. Era líquido e considerado afrodisíaco. Sem contar que era uma iguaria para as elites, e usado até como moeda de troca muito valiosa. Outros ingredientes foram adicionados ao 'chocolatl' ou 'xocolatl', como açúcar de cana, canela e anis, para melhor adaptá-lo ao paladar dos invasores europeus. Na Espanha, adicionou-se açúcar, ou mel, ou ainda baunilha. A baunilha vinha junto com especiarias, para acentuar seu gosto. E, aparentemente, dar dor de barriga. 

Uma receita azteca: vai uma pimentinha aí no seu chocolate? (acervo)


O chocolate ganha um adicional: o açúcar (acervo)

O chocolate conquistou a Europa. E aumentou o trabalho escravo entre o séc. 17 e o 19, já que o processamento do cacau era essencialmente manual nessa época. Desenvolveram-se processos para essa atividade, inclusive a descoberta do chocolate sólido, e vários nomes surgiram e se consolidaram nessa indústria. Infelizmente a exploração do trabalho continua. O maior produtor de cacau, a Costa do Marfim, tem milhares de crianças trabalhando na produção, e afirma-se que elas possam ser vítimas de tráfico ou escravidão. 30% das crianças com menos de 15 anos na África subsaariana são trabalhadoras, a maioria em atividades de agricultura, aí incluída a cultura do cacau. A maior parte dos grandes produtores de chocolate, como a Nestlé, compra cacau na bolsa de commodities onde o cacau marfinense é misturado com outros.

Em 2009, uma organização britânica afirmou que 12 mil crianças tinham sido traficadas em fazendas de cacau na Costa do Marfim. Essas crianças escravizadas estariam trabalhando em condições difíceis e abusivas.

Como pode algo que nos dá tanto prazer causar tanta dor? Veja em https://www.greenme.com.br/viver/especial-criancas/2469-9-multinacionais-do-chocolate-que-exploram-criancas.


Às vezes a realidade nos cutuca quando estamos à toa, flanando ou comendo um chocolate. Não vou deixar de pensar que viajar, seja como for, é uma experiência que só agrega. Eu posso (e devo), por exemplo, deixar de comprar produtos dessas marcas. É uma pequena ação, mas que se multiplicada pode fazer diferença.

Prazer é melhor com consciência (acervo)

É viajando também que nos aproximamos da história que apenas conhecíamos dos livros. Museus são uma das melhores maneiras de fazer essa ponte. Não há somente museus com obras de arte, pinturas, esculturas, etc. Há museus muito específicos, como aqueles dedicados ao chocolate. Nem sabia que existiam, mas já pude conhecer dois. Um em York, Grã-Bretanha, e outro em Paris. Ambos interessantes e que nos conduzem pela história dessa iguaria, mas o de Paris vai além, pois nos apresenta peças históricas relacionadas ao chocolate. Dentre outras, livros, cerâmicas, xícaras, descrições, e uma ótima demonstração de como fazer um bombom. Sem esquecer de abordar o aspecto social e político, ao se alinhar à Rainforest Alliance, entidade que apoia a biodiversidade e a preocupação com trabalhadores e consumidores. 

Guardar o espírito crítico é essencial, e degustar vários tipos de chocolate da melhor qualidade é divino. 







Fotos do acervo pessoal
Choco-Story - Paris 2018



terça-feira, 12 de junho de 2018

Viajar é algo mágico

Você planeja uma viagem, e algo acontece que tem o poder de atrapalhar seus planos, temporária ou definitivamente. Se pararmos para pensar, as possibilidades são muitas. Mau tempo, greves, condições médicas... Sou supersticiosa: não conto para ninguém até praticamente o retorno. Exceto, naturalmente, os familiares mais próximos. Aliás, para isso existem reservas que podem ser canceladas. Recomendo. Ou à decepção se juntará o prejuízo. 

Mas de tudo que pudesse imaginar, certamente não acreditaria em um pé fraturado. Quando então se aprende que um quinto metatarso pode fazer estragos jamais cogitados. Se eu fosse aquele jogador famoso, precisaria de cinco psicólogos para me fazer entrar em campo outra vez. Você encara um médico na emergência que anuncia uma imobilização de dois a três meses. Outro tanto de fisioterapia. E você vê aquele dinheirinho que se esforçou tanto para ganhar voando pela janela. Cabe recurso: uma segunda opinião ameniza o desastre. Um mês e com fisioterapia você pode viajar. Não é tão simples assim. A imobilização forçada tem consequências sérias para quem já tem uma certa idade, e sofre de alguns problemas de coluna. Você vai ou fica?

Eu fui. A bagagem cheia de remédios. Não foi fácil. Anda, senta, alonga, levanta... Nessa hora, mesmo se tratando de uma cidade que é melhor percorrer a pé, há que ceder à necessidade e à praticidade: vamos de Uber. 

A compensação vem na forma de um coração que fica muitas vezes mais quentinho, de tantas maravilhas experimentadas. Mesmo que a dor se instale depois e não dê sinais de partir. Quem pode vivenciar o Atelier des Lumières (http://www.atelier-lumieres.com/) e não ficar absolutamente deslumbrada? Só me resta torcer para a recuperação plena, mas essa experiência ninguém me tira. Com um cérebro saudável, óbvio.


Imperdível. 

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Você deve visitar o Museu de Belas Artes

O Rio de Janeiro pode não ter um Louvre (Paris), um Museu Britânico (Londres) ou um Hermitage (S. Petersburgo), mas tem ótimos museus que registram a história da cidade e têm peças relevantes. Um deles é o Museu de Belas Artes, ali em frente ao Teatro Municipal, pertinho da Cinelândia (dá pra ir de metrô), no centro da cidade. Dá até pra fazer uma visitinha na hora do almoço, pra quem trabalha nas imediações. O que é preciso é ir. Simplesmente ir.

Tem exposições pontuais? Tem. Descobrem-se pelos cadernos de cultura divulgados pela mídia ou até passando-se na porta e dando uma checada nos banners. A entrada custa R$8 (com meia-entrada para estudantes, professores, e talvez outras categorias). Tem site pra averiguar detalhes e agenda  (http://mnba.gov.br/portal/). O museu também tem página no Facebook (https://www.facebook.com/MNBARio/).

O museu foi inaugurado em 1938, mas sua história começa com a chegada da família real portuguesa no Brasil, em 1808. Em sua "encarnação" anterior era a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, fundada pelo rei e que funcionava em prédio próprio, construído por Grandjean de Montigny, um dos integrantes da Missão Francesa. A Escola Real virou Academia Imperial e depois Escola Nacional. O prédio do atual museu é uma combinação de estilos, e foi tombado pelo IPHAN em 1973.

O acervo partiu das obras trazidas por D. João, e foi ampliado com o tempo, inclusive com a incorporação do acervo da Escola Nacional, além de aquisições. Conta atualmente com cerca de 15 mil peças, entre pinturas, esculturas, desenhos e gravuras de artistas brasileiros e estrangeiros, além de uma coleção de arte decorativa, mobiliário, arte popular e um conjunto de peças de arte africana.

Seja lá o que for que esteja acontecendo, é preciso ir. Pelo menos uma vez, embora eu recomende várias. São muitas peças, e o museu não é pequeno. Demanda tempo e preparo físico. Também não sei se todos os ambientes já estão com a refrigeração funcionando plenamente. Ano passado tive de interromper a visita porque um dos ambientes estava com refrigeração nula, impossível de ser tolerada no verão saariano da cidade. 

E em pelo menos uma das alas do museu sempre tenho que dar uma espiada: o corredor onde estão as esculturas greco-romanas, ou a 'Galeria de Moldagens'. A primeira vez que vi, muitos anos atrás, não dei muita bola porque achei que eram "simples" cópias. Talvez porque estivesse diante de uma exposição de esculturas de Rodin. Ainda bem que a gente aprende a aprender. Só recentemente fui descobrir que eram mais do que isso.

A maioria das moldagens expostas nas duas galerias do segundo piso do MNBA é de peças realizadas do início do século XIX até 1928. Foram feitas em gesso com a técnica de moldagem direta nas esculturas originais distribuídas nos principais museus europeus. Este procedimento não é mais permitido, o que torna a coleção mais importante. Minha favorita é a réplica da Vitória de Samotrácia, cujo original está no Louvre. Posso dizer sem vergonha que me impressionei mais com ela do que com a Mona Lisa. Não falo de técnicas ou arte, porque não entendo nem de uma nem de outra. Mas de impacto mesmo. Acho incrível, e é um prazer poder revê-la no MNBA.

Um último destaque (melhor do que falar sobre as obras da coleção é vê-las) fica para Antínoo, uma escultura singular - não se trata de cópia, mas um original romano da época do imperador Adriano, encontrado em 1878 nas escavações patrocinadas por D. Teresa Cristina, imperatriz do Brasil, nas imediações de Roma, em Veio, antiga cidade etrusca. Fora o valor inerente à obra, bom saber que alguma figura política relevante do país já se interessou por cultura.

Vitória de Samotrácia (c. 190 a.C., autor desconhecido), encontrada na ilha de Samotrácia (1863). 
Uma das últimas moldagens do original em mármore existente no Museu do Louvre, Paris.
Foto: acervo pessoal


Afrodite/Vênus de Milo (c. 100 a.C.).
Original no Louvre.
Foto: acervo pessoal
Observem-se os olhos vendados. Cada um interprete como queira.


Outra Afrodite, de Arles (Atenas, c. 390-330 a.C.).
Original no Louvre.
Foto: acervo pessoal

Obra sem título de Anish Kapoor (Índia, 1954).
Foto: acervo pessoal


Fotos da obra do museu.
Foto: acervo pessoal

Painel Alegoria das Artes, da Academia Imperial.
Foto: acervo pessoal

A ceia do Senhor, atribuída a Antônio de Holanda (1450/1500 - 1550/1570).
Foto: acervo pessoal


A Primeira Missa no Brasil, 1948, de Candido Portinari.
Foto: acervo pessoal

Antínoo, estátua romana encontrada em 1878.
Foto: acervo pessoal


Mais informações interessantes constam do site do museu, mas vale ressaltar uma: o Google Arts & Culture, que reúne coleções de mais de 1000 museus e instituições de arte e cultura do mundo, acaba de incluir o MNBA. Com a digitalização de parte do acervo, facilita-se o acesso a seu patrimônio (https://www.google.com/culturalinstitute/beta/partner/museu-nacional-de-belas-artes?hl=pt-BR). São mais de 500 obras em alta resolução, com direito a passear pelas galerias através do Google Street View.


quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Pinakotheke

Na Grécia ou Roma antigas, pinacoteca era um prédio que continha pinturas, possivelmente afrescos, ou quadros, esculturas, e outras obras de arte. 
Atualmente o termo é usado também para designar uma galeria de arte com foco preferencial em quadros. Já fui à Pinacoteca de Paris, à de São Paulo, e agora me surpreendi em descobrir que existe uma no Rio de Janeiro. E que boa surpresa.
Vi o anúncio de uma exposição e fui procurar o tal lugar. Não que tenha uma localização obscura. Está em plena Rua São Clemente, Botafogo, no número 300. Dependendo de onde se vem, há transporte público (ônibus) que passa na porta. E não é muito longe da estação de metrô. Pode-se dizer que fica no sopé do Morro Dona Marta. 
A gente chega meio preocupada: vai que está havendo algum conflito, coisa nada incomum hoje em dia. E se descobre o casarão, que em outras épocas deve ter sido mansão de algum nobre do império. Não consegui descobrir as origens da casa, que me deixaram bem curiosa. Por enquanto vou me contentar com o fato de que fizeram um bom trabalho de restauração e manutenção. 
Para entrar é preciso tocar uma campainha. Possivelmente mais um dos reflexos da insegurança já mencionada. Não é uma conclusão surreal. 

Quando entramos, nos esquecemos de tudo. Exposições em espaços limitados têm um ar intimista, ou talvez tenha sido o fato de que não havia mais ninguém além de mim e de alguns funcionários que circulavam. Nada invasivos, como em algumas exibições, o que me deixa incomodada e paranoica. Parece segurança de loja achando que a gente vai surrupiar alguma coisa. Só quando já estava quase saindo vi um homem explicando ou apresentando algumas obras a outro.
De cara devo dizer que não sou muito fã de arquitetura que vou chamar de modernista. Penso em Brasília, em Corbusier... e como não sou arquiteta, falo de opinião meramente leiga. Confesso que gosto de um rebuscado, um meio-termo que "limpe" o exagero de um rococó, digamos assim. Mas me vi fascinada pela exposição dedicada a Oscar Niemeyer, em como algumas linhas podem se transformar em arte delicada e expressiva, me fazendo ver que menos é mais. Ou que há espaço para todo tipo de arte. Como no amor e na literatura, toda arte vale a pena. Nem que seja para se desgostar (sem histeria).
Há obras de outros artistas sigificativos da cultura nacional, como Tomie, Portinari, Ceschiatti, sem contar as belíssimas fotografias que têm arquiteto e artista como objeto, cada uma de um autor diferente. E há também um vídeo com o próprio Niemeyer. Fiquei assistindo por um tempo, mas a qualidade do som não ajuda. Vou pesquisar mais tarde onde é possível se ver na internet, nem que seja com um fone de ouvido. Pelo pouco que vi, vale a pena. E vale também circular no exterior do casarão. Há belas esculturas espalhadas pelos jardins, e o espaço é realmente admirável.
Funciona de segunda a sexta, das 10 às 18 h.

 Obras produzidas por Niemeyer em alusão ao golpe militar de 1964 (acervo)

Niemeyer por Evandro Teixeira, 2007 (acervo)


Niemeyer por Walter Carvalho, 2009 (acervo)

Os candangos de Bruno Giorgi (acervo)

Anjo, de Alfredo Ceschiatti, 1969 - Modelo para Catedral de Brasília (acervo)

Cabeça de Menino e Cabeça de S. Francisco - provas de painel de azulejo, Portinari, 1944 (acervo)

Afro-Brasileiro, Joaquim Tenreiro, 1971 (acervo)



terça-feira, 17 de outubro de 2017

Daquilo que nos envergonha

O Sítio Arqueológico Cais do Valongo, localizado na zona portuária do Rio de Janeiro, ganhou em julho de 2017 o título de Patrimônio Mundial da UNESCO. O Cais foi encontrado em 2011, durante as escavações feitas para a reforma da zona portuária. Suas ruínas são os únicos vestígios materiais da chegada dos africanos no país.
Não era um simples ponto de desembarque: 4 milhões de africanos escravizados vieram para o Brasil em 300 anos de tráfico; 2,4 milhões entraram no país via Rio de Janeiro, e 1 milhão deles pelo Valongo, entre 1774 e 1831. Para se ter um parâmetro, os Estados Unidos receberam cerca de 400 mil em toda a sua história de tráfico.
O historiador Carlos Eugênio Líbano Soares, da UFRJ, afirmou que o Cais do Valongo é o complexo negreiro mais importante do país na história da diáspora africana na era moderna.
A Intendência Geral de Polícia da Corte da Cidade do Rio de Janeiro fez construir o Cais do Valongo em 1811, para atender a antiga determinação do Vice-Rei, o Marquês de Lavradio, de 1779. Seu objetivo era retirar da rua Direita, atual rua Primeiro de Março, o desembarque e comércio de africanos escravizados.
Ao longo dos anos, o Cais passou por sucessivas transformações. Na primeira intervenção, em 1843, foi remodelado para receber a Princesa das Duas Sicílias, Teresa Cristina Maria de Bourbon, noiva do então futuro Imperador D. Pedro II, e passou a se chamar Cais da Imperatriz. As reformas urbanísticas da cidade no início do século XX fizeram com que o Cais da Imperatriz fosse aterrado em 1911. 
Ao ser nomeado patrimônio mundial, o Cais do Valongo fica no mesmo nível de outros lugares reconhecidos pela UNESCO como locais de memória e sofrimento, como um memorial em Hiroshima, no Japão, e o Campo de Concentração de Auschwitz, na Polônia. 
Penso que há uma tendência no Brasil ao "esquecimento" de sua história, de se tentar ignorá-la ou pintá-la de cor-de-rosa. Não se dá o devido valor à preservação da memória, como não se dá à ciência e à educação. E o racismo ainda vive. O Cais do Valongo tem um significado extraordinário para nos fazer lembrar dessa vergonha, desse crime contra a humanidade. Esperemos que a lição seja aprendida e que pelo menos o sítio seja preservado.
Sítio arqueológico do Cais do Valongo - acervo (2017)

A história do sítio arqueológico - acervo (2017)

A história do sítio arqueológico - acervo (2017)

A história do sítio arqueológico - acervo (2017)

Monumento ao Cais da Imperatriz - acervo (2017)

Sítio arqueológico do Cais do Valongo - acervo (2017)

Sítio arqueológico do Cais do Valongo - acervo (2017)

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Outras fotografias

Sou a pessoa mais ignorante do planeta. Entro num museu e às vezes não tenho ideia do que estou vendo. Não sei descrever estilos de pintura, ou as particularidades desse ou daquele artista. Olho e gosto por algum motivo, mas se não registrar quem é o autor da obra, fica por isso mesmo, no visual. Não sei se vou mudar isso, se vou passar a ler biografias ou estudar os estilos de cada um, os movimentos artísticos e suas manifestações, ou se vou continuar preguiçosa, fotografando e depois pesquisando no Google/Wikipedia. Tanta coisa pra ler, tanta coisa pra aprender... 

Mas minha abismal ignorância é diretamente proporcional ao imenso prazer que tenho em visitar museus e descobrir o que me atrai, mesmo sem saber o porquê. O mundo é grande e cabe no breve espaço de uma tela. Haja museus.

Sigo a multidão. E chego a 'Guernica', exposta no museu Reina Sofia, em Madri. Talvez uma das obras mais famosas do famoso Picasso. No limite dos meus desconhecimentos, sei um mínimo sobre o pintor e essa obra em especial. Não entendo muito do cubismo, esse movimento artístico que tem Picasso como um de seus expoentes, nem sou exatamente apreciadora de todas as obras dessa fase. Mas me lembro que ainda era criança e vi um documentário na então TV Educativa que me deixou absolutamente fascinada. Possivelmente falava do artista, mas é certo que o que me marcou foi o desvendamento dessa obra que representa a revolta contra a guerra que fez da cidade de Guernica alvo de bombardeios nazistas alemães e fascistas italianos, a pedido do governo fascista espanhol. Mais uma tragédia na conta dos senhores da guerra.

Enquanto trabalhava no mural, Picasso disse:

"No painel no qual estou trabalhando, que deverei chamar de Guernica, e em todos os meus trabalhos recentes, claramente expresso minha repulsa à casta militar que afundou a Espanha em um mar de dor e morte." 

Após 35 dias de trabalho, ele terminou o mural em 4 de junho de 1937.

Há várias curiosidades envolvendo essa obra e o artista, mas me interessei por uma em especial. Diz-se que Picasso tinha um espírito mordaz tão expressivo quanto seu talento artístico, e um dia se viu diante de um oficial da Gestapo alemã que lhe perguntou, a respeito de Guernica: "Você fez isso?", e o artista lhe teria respondido, "Não, você fez".


Guernica, Museu Reina Sofia (Acervo/2016)

Também fico de queixo caído com detalhes de construções. Em geral prefiro-as antigas. Quanto mais, melhor, porque assim têm história pra contar. Como a Catedral de Sevilha, concluída no séc. 16, quando então se tornou a maior catedral do mundo, suplantando a Hagia Sophia, uma igreja bizantina cristã. É a terceira maior igreja do mundo e também a maior dentre as góticas. Mas por ser a única que sedia o bispado, é a maior catedral do mundo. Já foi até mesquita, durante o longo período de ocupação moura na península ibérica.



Catedral de Sevilha, Patrimônio Cultural da Humanidade (Acervo/2016)


Não vou entrar no mérito de como certas obras, como prédios ou estátuas, são produzidas. Mão-de-obra, dinheiro gasto, proveniência desses recursos e algumas homenagens questionáveis sempre haverão de me fazer refletir. 

Por exemplo, alguma vez ouvi dizer que as ruas de Ouro Preto e outras cidades coloniais tinham um calçamento chamado "pé-de-moleque" porque eram crianças escravas que as assentavam. Lenda ou não, é óbvio que escravos faziam o trabalho braçal no Brasil dessa época. Em outros países se encontrarão histórias parecidas e obras executadas com exploração maior ou menor de pessoas. Como os camponeses na Rússia do tempo dos tzares (imperadores).

Não há palavras que possam refletir o esplendor das obras de arte encontradas nos museus e prédios históricos de S. Petersburgo, na Rússia. Reflexões à parte, são deslumbrantes. O Hermitage e o palácio da imperatriz Catarina II são destaques, sim, porém há muito mais, como por exemplo, o museu Fabergé.

Antes ligava Fabergé aos ovos imperiais de Páscoa. Alguns estão no museu, hoje de propriedade particular. Outros estão espalhados pelo mundo. Além dos nove ovos criados pelo joalheiro Peter Carl Fabergé para os dois últimos tzares, há cerca de 4000 peças de ouro, prata, bronze, porcelana, e pinturas no museu. Obras requintadas, preciosas, que refletem um pedaço da história da arte do país. Mesmo que os ovos tenham se espalhado pelo mundo e coincidam com a agonia de um regime. 

O museu Fabergé fica no Palácio Shuvalov, um dos mais belos da cidade, que é linda. A coleção de ovos foi adquirida pelo bilionário Viktor Vekselberg ao magnata norte-americano Malcolm Forbes.



O ovo que não foi feito para a família imperial, mas para a Duquesa de Marlborough, em 1902 - (Acervo/2016)



Peças de outros artistas russos - Sala Branca (Acervo/2016)


Arte e dinheiro sempre estarão estreitamente vinculados, penso. Mas não preciso possuir nada disso, a mim me basta poder ir aonde as obras estiverem. Ou, se isso não for possível, contar com o Google e a Wikipedia para suprir a vontade de constatar que o ser humano é capaz de feitos extraordinários, quando quer. Por sua vez, também é capaz de destruir aquilo que outros construíram com tanto sacrifício. Desejo que o ímpeto de construir seja mais forte que o de destruir.




sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Fotos e textos



Memorial a Shakespeare - Catedral de Southwark, Londres (2017)



British Library (2017)



Alnwick Castle (2017)


Disneyland - 2012



Sou exagerada. Se posso escrever vinte palavras em vez de uma, ou tirar dez fotos de um mesmo objeto, é o que faço. Diziam os antigos que o que abunda não prejudica. Pode ser que sim, pode ser que não. Posso ter mais opções na hora de selecionar o que vai restar no final, mas também posso ficar confusa. Deve ser o mesmo princípio dos meus pais e avós para acumular coisas, “um dia você vai precisar”. E vão se juntando coisas, palavras e fotos. Às vezes até pessoas. A gente guarda. É um hábito que se cria, e do qual é difícil se livrar. Há muita gente capitalizando a ideia de desapego: são as mudanças de hábito, de gerações pós-guerra, da carência, para as gerações do descartável.

O problema é justamente saber o que fazer com o que se acumula uma vida toda, e equilibrar as práticas de ajuntar e desapegar. O melhor é conservar lembranças. Viajando, por exemplo. Ou lendo, visitando museus, centros culturais, prédios históricos. De alguma forma, tudo isso se relaciona.

Não sei o que me move para decidir para onde quero ir ou o que desejo fazer. Leio, vejo filmes, séries, circulo pelas redes sociais e pelos sites de busca, e me inspiro. O que sobra de tanta informação é algo meio misterioso. Porque um lugar e não outro?

Uma coisa eu sei: literatura me influencia.

Resolvi fazer uma experiência, para tentar vencer a inércia que me paralisa quando considero escrever e, aproveitando uma iniciativa recente de organizar os arquivos de fotografias, pensei em pegar um número não muito grande de fotos avulsas, e buscar um elo entre elas. Qual o critério? Não vejo como ser totalmente aleatório, e certamente vou selecionar as que mais me atraírem. Concluo que um tema pode ser a chave para tocar o projeto. Com centenas de fotos digitais é melhor ter um mínimo de organização. Datas, pessoas, lugares?

Então, literatura e viagem. Ainda não passei por todas as fotos, mas dentre as recentes, percebi o mérito dessa ideia: ela estaria por trás das andanças, mesmo quando não intencionalmente? Vou averiguar.

Por enquanto, escolho quatro fotos, três deste ano de 2017, e uma de 2012.

A primeira foto é de uma escultura de Shakespeare, encontrada na Catedral de Southwark, em Londres. Sei que não fui lá por causa disso, pois desconhecia esse detalhe. O que eu queria era visitar a catedral mais antiga da cidade, porque tenho verdadeira fascinação por prédios históricos e patrimônios culturais. Quanto mais antigo, melhor. E no caso, há até evidências arqueológicas da existência de um templo romano anterior à igreja cristã, primeiro católica, hoje anglicana.

Porque Shakespeare? Essa era a paróquia que ele frequentava quando morava perto do Globe Theatre. Seu irmão, Edmund Shakespeare, foi enterrado no terreno da igreja em dezembro de 1607, mas o local exato é desconhecido. Um memorial dedicado a ele fica no chão da seção do coro. Uma bela janela de vitral é dedicada a Shakespeare, mostrando personagens de suas peças. E sob a janela fica a escultura do escritor. Atrás dele, percebem-se os detalhes da catedral e do teatro. A estátua de alabastro foi criada em 1912 por Henry McCarthy.

Depois, a foto mais óbvia: um detalhe da loja da Biblioteca Britânica, que tem livros à venda com edições próprias, e uma particularidade que adoro: recomendações personalizadas. Me faz lembrar a discussão levantada no filme ‘Mensagem para você’, com Meg Ryan e Tom Hanks. Ela tinha uma livraria pequena, com vendedores especializados, enquanto ele tinha uma megaloja, uma empresa que negociava livros como qualquer outra mercadoria. A cena ilustrativa dessa diferença é quando uma mulher está em busca de um livro infantil sobre “sapatos”, e o pobre vendedor fica obviamente perdido. Imagina, você chega na Saraiva e pede a um vendedor um livro infantil sobre castelos. Chega a ser cruel. A cerejinha do bolo é quando a personagem de Ryan, escondida num canto, dá as dicas sobre os livros da autora, Mary Noel Streatfield, e o vendedor pergunta como se escreve.

Agora fiquei com vontade de ler os livros. E os diálogos maravilhosos do filme, dirigido por Nora Ephron, uma ótima escritora, e escritos por ela e sua irmã Delia.

Passei ao castelo de Alnwick, construído no século 11 depois da conquista normanda, e habitado até hoje. Serviu de locação para filmes e séries, alguns muito famosos, como Harry Potter e Downton Abbey. Descobri que uma estátua de um antepassado do atual duque foi retratado em uma peça de Shakespeare. Mais literário que isso fica difícil.

Resgatei ainda uma foto de 2012 para lembrar das delícias de um clássico da infância, o mundo criado por Walt Disney. Disneyland, o primeiro parque, na Califórnia, o único construído sob a supervisão direta do criador, é um sonho para quem conviveu em algum momento de sua vida com os personagens desse mundo de fantasia. Muitos baseados em personagens da literatura infantil, ainda que adaptados. A imagem é do Coelho Branco da história de Alice, de Lewis Carroll. O filme de Disney é o que eu conheço. Confesso que tenho o livro mas não li. Vergonhoso, eu sei, mas é a verdade. Outra hora eu volto ao tema, por conta de uma maravilhosa exposição que vi em São Paulo sobre Alice no País das Maravilhas.

“É tarde! É tarde! É tarde até que arde! Ai, ai, meu Deus! Alô, adeus! É tarde, é tarde, é tarde!”, diz o coelho no filme e eu endosso. Sempre é tarde quando eu acabo de escrever.

Clarice: escrever é o mesmo processo do ato de sonhar: vão-se formando imagens, cores, atos, e sobretudo uma atmosfera de sonho que parece u...