sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Dora Bruder, ou a Paris dos esquecidos



Memória é uma daquelas coisas que só aparece quando convém. Ao indivíduo, a um grupo ou a um país. A não ser que se trate de demência, uma condição física que o sujeito não pode prever ou evitar.

A gente joga ou tenta jogar pra debaixo do tapete tudo aquilo que nos deixa mal. E em tempos de importância exacerbada da imagem, uma razão a mais para fazermos de tudo para parecermos mais puros que as vestais dos templos romanos.

E aí quando a imagem fica meio craquelada quando os podres aparecem? Digamos, de uma cidade, de um país.

Acho que não resta um lugar no mundo que não tenha um passado pouco glorioso. Resta saber se existe a admissão da memória.

Exemplos muito conhecidos de vergonha compartilhada por muitos países são a “colonização”, a escravidão e o tratamento dispensado aos judeus na Segunda Guerra Mundial.

Há quem negue. Sempre há quem negue. Pois se há quem diga que o homem não foi à lua. Que se trata de fabricação dos EUA. Hmmmm… será? Porque não negar, especialmente se há destruição de provas? O ônus da prova cabe ao acusador…

Entra Dora Bruder, personagem e título do livro de Patrick Modiano, ganhador do prêmio Nobel de literatura em 2014. Difícil assimilar a história enquanto ela se desenrola, de tanto que se parece com um registro documental, um relato da Comissão da Verdade ou do Tortura Nunca Mais. Mas há que se ter paciência para desenrolar o fio da meada, tanto da história real como da fictícia, porque, como o autor diz, talvez eles tenham simplesmente se esquecido que esses registros existiam.

Dora Bruder, como tantas outras adolescentes e mulheres, foi enviada para a prisão de Tourelles (XXe arrondissement de Paris), depois para o campo de Drancy (Seine-St-Denis), para seguir para Auschwitz. Imagine-se seu destino final.

Camp de Drancy (Cité de La Muette) - German Federal Archives - Wikimedia Commons

Estamos falando de Paris, uma das cinco cidades mais visitadas do mundo, com uma história milenar, um povo orgulhoso de sua cultura. E que no entanto, não somente colaborou com o governo nazista, como foi além, assim como muitos outros países europeus (todos?) em sua profunda aversão aos judeus. O governo francês (Marechal Pétain) abriu tantos campos de concentração para receber os presos, que acabaram virando um setor econômico pleno, a ponto de o historiador Maurice Rajsfus escrever que “a rápida abertura de novos campos criava empregos, e a polícia nunca parou de contratar durante esse período”.

Modiano segue os possíveis caminhos percorridos por Dora Bruder. Tento fazer a mesma coisa. A rua onde ela morava fica a apenas 1,5 km de Montmartre, um dos mais conhecidos pontos turísticos de Paris. Mas o que é impossível é imaginar o que ela e outras pessoas na mesma condição viveram.

“Et au millieu de toutes ces lumières et de cette agitation, j’ai peine à croire que je suis dans la même ville que celle où se trouvaient Dora Bruder et ses parents, et aussi mon père quand il avait vingt ans de moins que moi. J’ai l’impression d’être tout seul à faire le lien entre le Paris de ce temps-là et celui d’aujourd-hui, le seul à me souvenir de tous ces détails.”

“E no meio de todas essas luzes e dessa agitação, custo a crer que estou na mesma cidade onde estiveram Dora Bruder e seus pais, e também meu pai quando ele tinha vinte anos a menos que eu. Tenho a impressão de ser o único a fazer a ligação entre a Paris daquele tempo e a de hoje, o único a me lembrar de todos esses detalhes.”

Um dos poucos a se lembrar que esses horrores se passaram nessa que é conhecida como a cidade-luz.

Alguns anos depois de escrever o livro, a atual prefeita de Paris  e o escritor descerraram uma placa em frente a uma escola do 18e com o novo nome da rua: “Promenade Dora Bruder”. Modiano declarou que Dora se tornou um símbolo, que ela representava para a cidade a memória de milhares de crianças e adolescentes que partiram da França para serem assassinados em Auschwitz (cita o livro de Serge Klarsfeld, Memorial [Le mémorial des enfants juifs déportés de France, FFDJF, 1994]). 
Mencionou ainda que a inauguração de um local em seu nome era uma forma de resistir ao desejo dos nazistas, que queriam fazer desaparecer Dora Bruder e aquelas iguais a ela, e apagar até seus nomes. “Creio que é a primeira vez que uma adolescente que era anônima é inscrita para sempre na geografia parisiense”, disse ele (http://www.lemonde.fr/culture/article/2015/06/01/patrick-modiano-dora-bruder-devient-un-symbole_4644883_3246.html#G5e3Imx9CbxoH5kQ.99).

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