sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Antes do amanhecer


'Baudelaire disse: "A forma de uma cidade muda mais depressa, lamentavelmente, que o coração de um mortal". Ainda assim, a continuidade se firma em certas formas. A Idade Média deu à cidade, ou à maioria delas, um espaço rodeado por uma muralha, cujo vestígio subsiste mesmo quando as muralhas desapareceram. (...) Se o centro perde em energia, ganha em prestígio; é que ele permite ver num relance a cidade: sua beleza o resume. O centro sobrevive e provavelmente sobreviverá por muito tempo pelo recurso ao imaginário.'
Jacques Le Goff, Por amor às cidades

Etapa seguinte, Viena. De Munique, trem. Muito fácil, nem foi necessário comprar Eurail, que era mais caro e complicado, pq tinha de reservar e já estabelecer as datas. Vai que dá zebra? O plano era chegar e comprar na hora. Penso que só hotel e avião é que não pode fazer isso. Corre-se o risco de ficar plantado.
Nos meus mínimos preparativos, apurei que outrora Viena foi cercada por essa muralha chamada Ringstrasse. Que virou uma "rua" (redonda, será? tenho de ver o Google Maps), que muda de nome algumas vezes. 'Strasse' é rua nessa língua difícil, e 'Ring' seria o mesmo que em inglês, anel? Oh, well. A estação de trem é super. A cidade ñ me deixou encantada, não sei a razão. Acho que estava nervosa. Muito pouco tempo para ver o que eu queria: Klimt (de preferência 'O Beijo' - meu favorito de todos os tempos, tenho a reprodução na minha sala), queria, se possível, ir ao túmulo de Beethoven (o único que já quis ver em minha vida, desde que assisti ao filme Immortal Beloved, com Gary Oldman, magnífico, e me fez chorar, coisa rara em filmes: com a regência da Nona Sinfonia, divina, com a carta à amada e a cena final); e provar a tal sachet torte. Parecia fácil. Ahã. Not!!!!!!!!!!!!
Os "astros" conspiraram contra: o hotel não tinha uma porcaria de um adaptador de tomadas para eu carregar minha câmera digital e, claro, pela Lei de Murphy, ela descarregou (aaaaaaahhhhhhhh, agora sei pq eu tenho pouquíssimas fotos de lá!!!!!). Fiquei com medo de chegar a Praga e o prejuízo ser duplo - conclusão: pragmatismo é a solução. Seguir a Ringstrasse, ver o que tem no caminho, achar a Ilha dos Museus, ver o que tinha Klimt, e dar-me por (meio) satisfeita. O tempo que sobrasse, achar a rua de comércio e catar uma loja que vendesse o tal adaptador.
Resumo da ópera: a Ilha dos Museus é de tirar o chapéu. Assisti a uma bela exposição no museu que escolhi (Leopold Museum) - Schiele & Klimt. Passei por um belíssimo parque - Parque da Cidade, onde há uma estátua de Strauss tocando violino linda (dizem que é super fotografada e tem de ser, porque foge àquela mesmice daqueles políticos ou mesmo daquelas esculturas de inspiração greco-romana, e tudo que evoca a música me fala ao coração...). Conheci o Danúbio (que não é azul...). Vi até um bar chamado 'Caipirinha'. Não entendi nada. E nada de sachet torte. Não achei o lugar famoso. Acabei no McDonald's (tenho um trato com minha sobrinha: ela coleciona os brindes do McLanche Feliz - como eu estava com fome e ñ tinha 1 segundo a perder antes de pegar o trem...). E achei o adaptador. Final (quase) feliz. Digamos, agridoce. Como eu gosto desses sabores, tudo bem. Diz uma amiga minha que é um pretexto para voltar. Não foi a minha intenção. Planejei exatamente para saltitar, desse no que desse. A vida dirá.
No dia 30/12/09, estava passando Antes do Amanhecer, com Ethan Hawke e Julie Delpy, que eu ainda ñ tinha visto (apesar de ter o DVD). Fui interrompida por um telefonema, mas deu para ver algumas cenas e talvez até reconhecer alguns lampejos de Viena. Acho. Adoro isso, aliás, é uma das coisas que me deixa contente em viajar e me faz sentir que "conheço" um lugar: começa com a pesquisa prévia, ler o máximo que eu posso, contextualizar. Depois chegar, andar, comer, se possível, tendo oportunidade (pois não sou extrovertida), falar com as pessoas. Por isso tb fico irritada de passar pouco tempo, ñ dá para "sentir" o lugar. E se ñ entendo a língua, pior ainda, é como se ñ conseguisse respirar direito...
Quando consigo escrever durante a viagem, as coisas vão se encaixando, consigo reproduzir o que sinto em tempo real. Depois fica mais difícil. Aí, quando retorno, conto para as pessoas o que vi, e as memórias vão se cristalizando, e adquirindo outras tonalidades, talvez até se modificando, seja se fundindo com lembranças já existentes previamente, seja se perdendo, pois ñ é possível reter tudo, ou se confundindo, ou, quem sabe, se reinventando... é aí que entram "memórias alheias". Se vejo uma foto ou assisto a um filme, certamente a qualidade, a nitidez ou o ângulo são diferentes ou melhores. A memória se sobrepõe ou completa a minha. É ao mesmo tempo um reconhecimento, uma renovação e um preenchimento de lacunas. Um aaahhh! e um oooohhhh! aqui e acolá...
Parece que tudo que espero de uma viagem é isso mesmo: aaaahhhs! e oooohhhs! O que esperar mais?

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