quarta-feira, 27 de julho de 2016

Perdida no museu

Biblioteca do czar Nicolau II (acervo)

Como se perder em um museu russo: fácil. É só não ter senso de direção, e descobrir que as senhorinhas que tomam conta das salas (são todas mulheres, e todas pra lá da lei do idoso) só falam russo.

Daí que chegamos ao museu, eu e minha amiga, e como costumamos fazer, estimamos o tempo de visita, marcamos o local de encontro ao término, para cada uma fazer o seu roteiro. Assim feito, nos encontramos, e ela me pergunta se vi a biblioteca do czar Nicolau. Faço cara de paisagem, e digo pra ela me dar 15 minutos que eu voltava já. S. Petersburgo não é ali na esquina. Sei lá se vou poder retornar. 

Nem me lembro se ela me deu alguma instrução, mas não ia adiantar muito. Não costumo guardar pontos de referência, e ir parar onde não devo é recorrente. Mas me lembrei que uma amiga tinha me falado que algumas palavras em russo têm uma sonoridade parecida em português. Duas delas: biblioteca e café. E lá fui eu, seguindo direções e tentando me comunicar com as senhorinhas, numa conversa de surdos. Não rolou, salta a palavra mágica: biblioteca? E elas me apontavam para onde ir. Até que cheguei na última, que, muito prestativa, se levantou, e me levou até a porta. 



Foi uma correria, mas a emoção que sinto com bibliotecas e livrarias justifica. Queria morar nelas. 

Claro que não sabia nada sobre ela, e tive de pesquisar. Tarefa ingrata. Só há uma breve descrição no site do museu. Concluí que pode haver livros ou artigos com mais detalhes, mas devem estar todos escritos em russo. Deixa pra lá.

O que descobri é que a biblioteca, que fazia parte dos aposentos privados do último imperador da Rússia, Nicolau II, que ascendeu ao trono em 1894, foi criada por Alexander Krasovsky. Foi executada no estilo neogótico inglês, e de acordo com as percepções românticas da Idade Média. Há nela elementos que vão do rococó ao art nouveau. 

O teto em nogueira é decorado com enfeites em quatrefoils (similar a um trevo). As estantes ficam nas paredes e na galeria superior, que se alcança por uma escada. O interior com seus painéis decorativos em couro, a lareira monumental, e as janelas altas com rendilhados transportam os visitantes aos tempos da Idade Média (quer dizer, como se imagina, algo assim como um ambiente de 'O nome da rosa', de Umberto Eco).

Quatrefoils no teto (acervo)

Estante em baixo... (acervo)

... e na galeria superior (acervo)

A escada (acervo)

A lareira (acervo)

A mesa, onde antes se dizia que ficava uma escultura de porcelana retratando o czar, agora está vazia. Há um busto de Catarina em uma outra mesa perto da escada. Acho justo.

Busto da imperatriz (acervo)

Vale destacar que a imperatriz Catarina, a Grande, era uma ávida colecionadora de arte e leitora, e fez de tudo para aumentar os acervos do império. Obras provenientes de toda a parte chegaram ao Hermitage, e a biblioteca só fez crescer. Até o império dar lugar à revolução, havia cerca de 15 mil volumes, com todo tipo de assunto, religião, filosofia, história, crônicas da família imperial, literatura, ciência, agricultura, e outros.

Fiquei aqui imaginando quantos livros deve haver nessa biblioteca, comparando com a nossa Biblioteca Nacional, fundada em 1810, com livros trazidos de Portugal na bagagem de D. João VI. Cerca de 200 anos depois, e agregados outros tantos livros, é a mais importante da América Latina, reunindo cerca de 9 milhões de títulos. Inclusive uma Bíblia de Mogúncia, de 1462, incunábulo impresso da tradução em latim por Gutenberg.

Foi quando descobri que S. Petersburgo tem sua Biblioteca Nacional, não somente a mais antiga do país, mas também sua primeira biblioteca pública. É uma das maiores do mundo, e tem a segunda coleção mais rica da federação russa, um tesouro do patrimônio cultural nacional. Foi criada em 1795 por ela, sempre ela, Catarina, a Grande, cujas coleções particulares incluíam os acervos pessoais de Voltaire e Diderot, que adquiriu de seus herdeiros. A coleção de Voltaire é ainda, nos dias de hoje, um dos destaques do acervo.

E quantos itens tem essa biblioteca? 36.475.000, sendo 15 milhões de livros. Inimaginável.

Esgotado o tempo de deslumbramento, e na impossibilidade de ficar por ali lendo ou pegar algum livro emprestado, me restou correr de volta ao ponto de (re)encontro com a amiga. Que, por sorte, é compreensiva. Naturalmente, me perdi. Há mais de uma saída, parece. Em vez de voltar aonde tinha saído na primeira vez, fui parar em outro lugar, que dava direto na rua. O jeito é retroceder, e novamente recorrer à minha fluência em russo, desta vez à outra palavra mágica: café? 

Resumo: as senhorinhas são simpáticas, mas todas tontinhas (exceto a que me guiou à "biblioteka"). E eu, claro, sou mais tontinha ainda, mas consegui chegar ao "kofe". Muito feliz.

Ah, e café se escreve assim (no alfabeto cirílico) - placa na Nevsky (acervo) 






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