quinta-feira, 28 de julho de 2016

Se é preciso comer, que seja gostoso

Dachniki, entrada (acervo)


Reza a lenda que ir ao supermercado de barriga vazia não faz bem nem pra saúde nem pro bolso: a gente acaba comprando mais quantidade e mais calorias. Posso dizer que acontece a mesma coisa ao tentar escrever sobre comida quando estou com fome. Imagine-se ver uma foto de um belo prato de estrogonofe (ou qualquer outra coisa de que se goste) com um estômago oco? É triste. Acho que até faz sentido cometer loucuras nessa situação. 

Bom, eu gosto mesmo desse prato que se tornou comum por aqui, e tem origem na Rússia dos meados do séc. 19, de acordo com a Wikipedia (https://en.wikipedia.org/wiki/Beef_Stroganoff). A primeira receita conhecida data de 1871, e descreve o prato como cubos de carne ligeiramente enfarinhados e salteados (nem sabia que 'sauté' era salteado), num molho de mostarda e água fervente, finalizado com uma pequena quantidade de sour cream (preciso aprender a fazer isso, adoro). Nada de cebolas ou cogumelos. Uma outra receita, já de 1912, acrescenta cebolas e extrato de tomate (de preferência, sem pelo de rato), servindo o prato com tiras de batatas fritas, consideradas o acompanhamento tradicional na Rússia (não foi o caso). A enciclopédia gastronômica Larousse de 1938 inclui tiras de carne e cebolas, seja com mostarda ou extrato de tomate opcionais.

Depois da queda do império russo, a receita se popularizou pelo mundo. A versão brasileira inclui pedaços ou tiras de carne (normalmente filé mignon) com molho de tomate, cebolas, cogumelos e creme de leite bem espesso. Também pode ser feito com tiras de peito de frango ou camarão, e costuma ser servido com batata palha, mais o arroz branco. Não vamos falar de outras variações, especialmente daquelas que permitem substituir o molho de tomate por ketchup. Uma coisa é ser criativo, outra é estragar o prato.

Toda essa introdução para explicar a importância de se escolher um restaurante para se provar o estrogonofe "original". Pra mim, comida é uma oportunidade excelente de se chegar mais perto de uma cultura. Foi assim que chegamos ao Dachniki, número 20, na Nevsky Prospect. 

Pra conferir o cardápio na entrada (acervo) 

Onde quer que se leia sobre o restaurante, as descrições são parecidas, relatando que possui uma atmosfera soviética autêntica, que é um favorito entre russos e estrangeiros, e oferece uma culinária caseira: pelmenis (uma massinha recheada de carne, parecida com um ravióli), panquecas, sopas tradicionais, estrogonofe... Tudo isso num ambiente decorado por elementos de uma casa de campo russa, o que a gente descobre já quando abre a porta externa, e escuta um galo cantando ou uma vaca mugindo a título de campainha. 

A carinha de fazenda (acervo)

Descemos uma escada para chegar ao restaurante. Na entrada, um obstáculo: a língua. Em todos os restaurantes, fala-se um mínimo de inglês. Nesse, a hostess fugiu à regra. Limitou-se a escrever o tempo de espera num pedacinho de papel (30 minutos), e a olhar para nós com cara de agente de imigração de aeroporto. Não ofereceu uma opção, como esperar no bar. Era vai e volta em 30. Fomos, né? Demos uma volta pela área, ali no final da Nevsky, que não tem nada pra ver (em 30 minutos). 

Nada aqui... mas pelo menos o tempo estava bom, o céu bonito... (acervo)


... mas na transversal deu pra conseguir um flagrante de uma policial... (acervo)

Mas graças à intuição de minha amiga, em 20 minutos fomos checar se não havia um espaço para esperarmos, e demos sorte de encontrar mesa. Uma pessoa mais simpática nos recebeu à porta. 

Tinha área de bar, com os banquinhos pra facilitar a espera (acervo)

A simpatia continuou no resto do atendimento. O inglês não é fluente, porém suficiente para o entendimento, tem cardápio em inglês pra facilitar, e a boa-vontade deles é imensa. 

Cardápio bilíngue (acervo)

Passamos então à melhor parte: comer. O prato principal já estava definido, não havia o que pensar. Uma entrada? Tinha lido sobre os palitos de pão torrado com queijo e alho. Olha, só experimentando. Show.

Os palitos e o refresco gostosinho de alguma fruta vermelha diferente (acervo)

O estrogonofe russo (acervo)

Qual o veredito sobre o estrogonofe? Melhor que já comi. Carne de ótima qualidade (o que raramente é verdade por aqui), nada daqueles pedaços boiando num molho suspeito (o que botam ali para engrossar? creme de leite não é, porque está muito caro... suspeito que seja amido de milho...), ou daquela montanha de arroz branco sem graça, e uma batata frita gordurosa. O que comi foi um prato simples e saboroso, sem disfarces. Por um preço extremamente acessível.

E o ambiente? Nesse restaurante estilo cantina (stolovaya), realmente se tem uma impressão de casa rústica. Se corresponde exatamente a uma casa do interior russo, não posso dizer, mas certamente parece. Aquele jeito de coisa antiga, século 20, década de 50 talvez. Tem um rádio antigo numa prateleira... 

E reparem nos troncos de árvore que formam a parede... (acervo)

Tem parede forrada de madeira com placa de rua...



O jeitinho doméstico da decoração, com a estante com as fotos de família e outros objetos do dia-a-dia...



E tinha bar, com bancos apropriados para a espera até liberar uma mesa. O restaurante não é muito grande, e talvez fosse a hora de almoço comercial. Como aqui, em certo horário, quando fica praticamente impossível conseguir mesa em restaurante no centro da cidade. 



No final das contas, o resultado foi positivo. A vaca que mugia e o galo que cantava a cada vez que a porta da rua se abria, e a hostess que não sabia se comunicar não comprometeram a boa experiência resultante da combinação de se estar numa cidade incrível, um ambiente que busca refletir um pouco da cultura local tanto pela decoração como pela comida, a qualidade do produto, e a gentileza das pessoas que te servem. É um conjunto poderoso, especialmente quando rotineiramente não se tem nada disso. 





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